Valor Econômico, v. 20, n. 4948, 27/02/2020. Especial, p. A12

Combate ao vírus tira Mandetta dos bastidores

Leila Souza Lima


Sem ter enfrentado grandes crises desde que assumiu o posto, calmaria rompida com a necessidade de reagir à emergência causada pelo coronavírus, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é visto por especialistas como um perito com qualificações à altura do comando da pasta, mas que se movimenta para atender aos interesses do governo e satisfazer demandas corporativistas.

Com a eclosão da epidemia, Mandetta ganhou inesperadamente os holofotes. Avesso a entrevistas, passou a centralizar a comunicação oficial sobre o tema. A postura comedida do médico, duas vezes deputado federal (DEM-MS), também o ajuda a ter vantagem em relação a outros ministros quando precisa aprovar medidas da agenda governista. Sustentadas por arcabouço técnico, elas dão mais trabalho para serem barradas.

Diferentemente de outros colegas ruidosos, como o ministro da Educação, Abraham Weintraub, e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, o titular da saúde mantém-se à parte de polêmicas ideológicas. Em rara disputa, foi quase que por falta de alternativa que discordou da ministra quando Damares pregou abstinência sexual como forma de evitar gravidez precoce.

Esse cuidado ao se manifestar conferiu a Mandetta uma capa de quase invisibilidade. Mas a conduta não deve ser vista como sinal de ausência de estratégia política e de que não segue estritamente a pauta ditada pelo governo Jair Bolsonaro, segundo observadores.

Projetos aprovados em sua gestão, como a portaria nº 2.979, de novembro de 2019, estariam em conformidade com a dura agenda de ajuste fiscal proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. A medida institui o programa Previne Brasil, que altera a forma de financiamento da atenção primária no âmbito do Sistema Único de

Saúde (SUS). Com a mudança, o repasse federal para municípios passa a tomar como base principalmente o total de cadastrados por equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF). Até então o Piso da Atenção Primária (PAB) fixo era calculado per capita. Para os críticos, apesar de o levantamento ser necessário, a exigência contém imperfeições do ponto de vista da viabilidade de execução e dificilmente será cumprida por cidades pobres ou em dificuldade fiscal, por requerer investimento e braços.

“O pagamento era feito por número de habitantes, agora será por captação de usuários pelas equipes de saúde da família. Como há limitações municipais e das próprias equipes, acaba sendo uma forma de diminuir o repasse aos municípios. O programa tem embasamento técnico, pois o mapeamento auxilia na gestão e racionalização, mas traz um componente oculto que é redução de gastos”, analisa Gastão Wagner, professor da Unicamp especializado em saúde pública.

“O problema de ter braços para cadastrar poderia ser até superado, mas hoje o número total de equipes no país só captaria algo em torno de 50% da população”, segundo Wagner. Ele cita Campinas, com cerca de 140 equipes de saúde da família. Pelas novas regras, em torno de 600 mil pessoas seriam cadastradas na cidade, que tem mais de 1 milhão de habitantes.

“Nos Estados e municípios, a crise fiscal vem levando à desconstrução do SUS. No Rio, a prefeitura tem fechado unidades de pronto-atendimento, de saúde da família, e isso não é exceção. Em Campinas, nos últimos cinco anos, o sistema perdeu perto de 25% de pessoal por falta de reposição de aposentados e afastados”, calcula Wagner.

Ele menciona ainda as restrições impostas a convênios com organizações sociais, o que reduz serviços. “Então esse silêncio do Mandetta diz muito mais”, observa. Para Wagner, o titular da saúde não enfrenta o “chefe” da economia em sua determinação em fazer ajuste fiscal por meio de cortes e descontinuidade de políticas sociais.

Mas ele pondera que não existe uma guerra contra o direito universal à saúde e ao SUS. “O ministro tem uma postura discreta, e a explicação desse comportamento é o prejuízo político que deslizes na saúde podem acarretar de imediato. De 70% a 75% das pessoas no país só têm o SUS, um salário indireto para grande parte delas.”

Sufocados pelo aperto fiscal, municípios cortam políticas sem necessariamente reportar isso, diz ele. Deixam de repor pessoal, fecham unidades, reduzem listas de medicamentos. Uma espécie de crise silenciosa que aparece mais quando há denúncias ou mortes.

As mudanças têm deixado entidades da saúde em alerta. “A reorganização do sistema de saúde a partir da atenção primária não é uma grande novidade do ponto de vista de cenário. Não é uma criação desse governo. Apesar da habilidade política, ele [Mandetta] tem limitações estruturais importantes, como a Emenda Constitucional 95 [lei do teto]. Você tem políticas de expansão, mas a pergunta fundamental que ninguém responde é: de onde vai sair dinheiro novo?”, diz o sanitarista Vinícius Ximenes, médico de família e comunidade, membro do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) e da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares.

Ele cita o fato de o governo ter estendido o tempo de serviço nas unidades de saúde, mas mantido o problema da falta de médicos e funcionários. “Essa expansão de horários não está acompanhada de expansão da força de trabalho por causa de limites de gastos.”

Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisador visitante no Departamento de Saúde Global e Populações da Escola de Saúde Pública de Harvard, Adriano Massuda reconhece aspectos positivos na gestão Mandetta, mas tem suas objeções. “Ele buscou compor uma equipe técnica e inovar na atenção primária, criando secretaria específica para isso, o que acho muito bom”, diz ele. “Mas há risco de retrocessos devido a mudanças no modelo de financiamento, que vão reconfigurar as transferências para os municípios e o modo de funcionamento da ESF. Cidades que conseguirem se adequar podem ser beneficiadas, mas outras serão prejudicadas, provavelmente as mais pobres.”

“É uma gestão de certa forma apagada, o que num governo como o de Bolsonaro acaba sendo bom, já que as pautas negativas dominam. Mas com isso os problemas estruturantes da saúde não estão sendo enfrentados”, afirma Adriano Massuda. Segundo o sanitarista, que foi secretário executivo-adjunto do Ministério da Saúde e secretário municipal de Saúde de Curitiba, a gestão Mandetta é uma continuidade lógica racionalizadora de Ricardo Barros, ministro da Saúde de Michel Temer. “A diferença é que Barros é engenheiro, e Mandetta, médico. Ele transita relativamente bem em segmentos da saúde, tem grupos que o apoiaram e para os quais deve prestar contas, como a corporação médica e os planos privados de saúde.”

Na opinião do sanitarista, uma das principais pautas governistas caminha para a desregulamentação do setor, com flexibilização das exigências para formatar planos. “Um dos grandes pleitos das entidades de saúde suplementar é reduzir exigências de coberturas assistenciais para oferecer opções mais baratas de planos. Se acontecer, vai ser um retrocesso histórico, pois aumentará a fragmentação do sistema e dificultará ainda mais a coordenação com o setor público.”

Outra área impactada, lembra Massuda, foi a gestão participativa. A Secretaria de Atenção Estratégica e Participativa (SGEP) - que respondia por ações de apoio à participação popular e ao controle social, presentes no DNA do SUS, incluindo ações no âmbito do Conselho Nacional de Saúde - deixou de existir.

“Ele não comprou essa nem outras brigas; só se manifesta contrário ao governo quando é uma situação muito bizarra, como na campanha de abstinência sexual como método anticoncepção”, diz o sanitarista. “Do ponto de vista político, foi vitorioso até agora, conseguiu aprovar medidas provisórias encaminhadas, derrubou adendos a propostas. Embora seja um governo que carece de articulação política, nisso ele se saiu bem”, avalia Massuda.

Para ele, o ministério de Mandetta vem agindo dentro do que se espera para uma emergência com a gravidade do novo coronavírus. “É tudo muito novo, então é necessário entender as características desse vírus, que tem baixa letalidade e alta  transmissibilidade. Mas a coordenação do governo vem se mostrando efetiva, antecipando-se à crise com orientações passadas às secretarias estaduais e municipais de Saúde”, diz ele, creditando essa eficiência ao corpo técnico do ministério.

O sanitarista manifesta preocupação, no entanto, com a capacidade de resposta do SUS, caso a crise se agrave, tornando-se uma pandemia. “O ministério age corretamente para conter alarme e pânico na população, mas é responsabilidade do governo também fortalecer o SUS, que enfrenta grandes dificuldades. Não sabemos ainda se vai se agravar, mas é nessas horas que as fragilidades se mostram.” (Colaboraram Renan Truffi e Matheus Schuch, de Brasília)