Valor Econômico, v. 20, n. 4850, 03/10/2019. Opinião, p. A18

Onde está o meio ambiente no Plano Plurianual?

Suely Araújo
Fabio Feldmann


A proposta do Plano Plurianual 2020-2023 encaminhada pelo presidente da República ao Congresso Nacional estrutura as ações governamentais em cinco eixos - institucional, social, ambiental, econômico e de infraestrutura -, além de um específico para a chamada estratégia de defesa. O eixo ambiental, pelos dados globais apresentados, reúne 2,1% dos recursos previstos, correspondendo a quase R$ 140 bilhões em quatro anos. Esse total surpreende positivamente apenas na leitura da primeira planilha. Quando detalhado e compreendido, se expõe sua natureza discursiva.

A reação passa a ser de grande preocupação com as perspectivas da Política Nacional do Meio Ambiente, que vem sendo construída paulatinamente desde 1981, firmou-se com a Constituição e ganhou robustez com a inclusão das perspectivas mais contemporâneas, hoje em grande parte consubstanciadas nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).

No eixo ambiental da proposta do PPA 2020-2023 estão colocados apenas uma diretriz bastante ampla e, ao mesmo tempo, pouco clara - promoção do uso sustentável e eficiente dos recursos naturais, considerando custos e benefícios ambientais - e um único tema: agropecuária e meio ambiente. Entender os diversos elementos que integram a Política Nacional do Meio Ambiente como abrangidos todos por esse tema constitui distorção grave. A política ambiental é transversal e tem relação com os diferentes setores da economia, não apenas com a agropecuária. Ela tem conexão direta com a política energética, com as ações governamentais na área de infraestrutura de transportes, com a política de saneamento básico e muitos outros assuntos. Não faz sentido explicitar agropecuária e meio ambiente como tema único e incluir qualidade ambiental urbana como um dos programas finalísticos a cargo do Ministério do Meio Ambiente - há contradição interna na proposta.

Quando se detalham valores, a inquietação cresce. Do total de recursos destinados ao eixo meio ambiente, o Mapa (Ministério da Agricultura) ficará responsável por 98,4% dos recursos nos próximos quatro anos, sendo que 95,6% (mais de R$ 133 bilhões) são direcionados ao programa agropecuária sustentável. Os programas do Ministério do Meio Ambiente - mudança do clima, conservação e uso sustentável da biodiversidade e dos recursos naturais, e qualidade ambiental urbana - representam 1,6% do total de recursos do eixo. Se a conta for realizada considerando o total dos recursos governamentais previstos na proposta do PPA (R$ 6,8 trilhões), os programas do MMA representarão 0,03%, o que é inaceitável

O governo tem mais de R$ 100 bilhões para a agropecuária sustentável a cargo do Mapa, mas tem apenas R$ 2,2 bilhões para 4 anos nas ações finalísticas do Ministério do Meio Ambiente e suas autarquias. No programa qualidade ambiental urbana, são pouco mais de R$ 18 milhões para o período 2020-2023. Fica evidente que quase nada se conseguirá fazer com esses recursos, que em tese, segundo o próprio documento que acompanha a proposta do PPA, serão direcionados para o combate ao lixo no mar, a gestão de resíduos sólidos, às áreas verdes urbanas, qualidade do ar, saneamento e qualidade das águas, e áreas contaminadas.

A realidade será a ausência de política pública no plano federal em temas importantes como o controle da poluição do ar, que tem impactos graves na saúde pública atestados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Também se terá pouco espaço para incentivos efetivos à economia circular ou para ações direcionadas às áreas órfãs.

Reconhece-se a relevância de programas como governança fundiária, agropecuária sustentável e outros do Mapa, mas usar esses totais como equivalendo a aplicações na Política Nacional do Meio Ambiente gera narrativa distorcida. Por que não agregar nas ações ambientais, então, os valores dos programas de saneamento básico ou recursos hídricos, que estão no eixo econômico da proposta do PPA 2020-2023? O vínculo desses dois programas com a política de meio ambiente é muito mais direto do que o da defesa agropecuária, programa incluso no eixo ambiental.

No mundo real, o Ministério do Meio Ambiente e autarquias a ele vinculadas terão disponíveis recursos claramente insuficientes nos próximos anos. Nos valores previstos no projeto da lei orçamentária de 2020, há redução significativa em ações finalísticas extremamente relevantes. Para a fiscalização ambiental do Ibama, por exemplo, o Projeto de Lei Orçamentária (Ploa) 2020 traz valor 25,3% menor do que o previsto no Ploa 2019. Na prevenção e controle de incêndios florestais em áreas prioritárias sob responsabilidade da autarquia, o valor do Ploa 2020 tem queda de 34,8% em relação ao Ploa 2019. No monitoramento ambiental e gestão da informação, que atende todas as diretorias do Ibama, a redução é de 50% considerado o Ploa 2019.

Para o licenciamento ambiental federal, ferramenta crucial para viabilizar os principais investimentos de infraestrutura no país, o projeto de lei 2020 propõe o equivalente a pouco mais de metade (58,8%) dos recursos previstos no Ploa 2019. No licenciamento, os reduzidos valores nominais e a miopia administrativa impressionam: apenas R$ 4,6 milhões para o Ibama gerir no próximo ano uma carteira de cerca de 2.800 empreendimentos. Esse valor é inaceitável em face dos recursos que são arrecadados pela taxa de licenciamento e que, em regra, deveriam ressarcir os custos administrativos da autarquia com a análise técnica inerente às licenças. Em amostra aleatória de 20 licenças emitidas pelo Ibama nos últimos 2 anos, somam-se R$ 6,1 milhões em taxas pagas pelas licenças ambientais, arrecadados pelo Tesouro. Como a autarquia emite cerca de 600 licenças ou atos correlatos por ano, esse orçamento, além de insuficiente, é injusto.

No quadro de carência de recursos que se aponta nos próximos anos, é bastante complicado falar em aprimoramento de sistemas de análise no licenciamento, e o monitoramento pós-licença tende a ser nulo, com sérias implicações, incluindo potenciais desastres ambientais. O acompanhamento rigoroso dos empreendimentos que envolvem maior impacto e risco, prometido pelo governo, não se concretizará.

Os problemas não se restringem ao Ibama. Na principal ação finalística do Instituto Chico Mendes, de apoio à criação e gestão de áreas protegidas, a redução entre o Ploa 2019 e o de 2020 é de 39,3%. Isso significa uma diferença de quase R$ 70 milhões no ano.

Ora, se os recursos para 2020 serão insuficientes, a proposta do PPA 2020-2023 não assegura sequer que eles sejam mantidos nos anos seguintes. Sabe-se que o meio ambiente tem potencial de alavancar instrumentos econômicos e investimentos do setor privado. Mas é necessário entender que a política ambiental tem natureza preponderantemente regulatória, o controle estatal nesse campo não pode ser extinto por inanição. Se o quadro evidenciado na proposta do PPA não for revertido, está definitivamente decretado o desmonte da política ambiental em nível federal.

Suely Araújo, urbanista, advogada e ambientalista, doutora em ciência política, foi presidente do Ibama.

Fabio Feldmann é advogado e ambientalista e ex-secretário de meio ambiente do Estado de São Paulo.