O Globo, n. 32668, 15/01/2023. Mundo, p. 23
Guerra na Ucrânia põe UE diante de incertezas
Fernando Eichenberg
A eclosão da guerra na Ucrânia em 24 de fevereiro passado e seu prolongamento até hoje abalaram a agenda de uma Europa em busca de união política, crescimento econômico e maior independência em segurança e defesa. A invasão das forças russas de Vladimir Putin ao território ucraniano obrigou a União Europeia (UE) e seus países-membros a reverem estratégias de curto a longo prazo, provocou redistribuição de cartas no tabuleiro geopolítico, levou à reavaliação de alianças e alterou planos militares e energéticos.
— A guerra revirou completamente o espaço europeu — resume Tara Varma, analista do European Council on Foreign Relations (ECFR). — Infelizmente, este conflito não terminará logo, e há uma verdadeira questão sobre o que a UE fará no dia de amanhã.
O duo franco-alemão, considerado a “locomotiva” da Europa por seu poderio econômico e influência política, acreditava no sucesso das negociações com Moscou e foi surpreendido pelo ataque russo, apesar das advertências dos EUA do “risco humilhante” da agressão e do manifesto temor dos países do Leste Europeu, diz Varma. Segundo ela, de imediato houve duas mudanças de paradigma:
— A primeira foi a coordenação inédita na UE e junto à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], por meio de sanções rapidamente impostas à Rússia, e de ajuda financeira, humanitária e militar à Ucrânia. Pela primeira vez, a UE forneceu a um Estado não membro da Otan armas letais. A segunda foi a decisão inédita de conceder de forma acelerada status de candidato a entrar na UE a Ucrânia e Moldávia [em junho].
O conflito, no entanto, levou a um questionamento do poder decisório franco-alemão por parte dos países do Leste Europeu. Para a analista, Paris e Berlim devem aprender a serem “mais inclusivas”, pois muitos Estados-membros da UE se sentem excluídos das suas discussões a dois.
— O lugar dos Países Bálticos e do Leste é proeminente no debate hoje, e é extremamente importante que haja um reequilíbrio nesta questão, embora eles não estejam anda em condições de propor soluções e promover coligações — defende.
França e Alemanha partilham dos mesmos princípios, mas “não têm a mesma maneira de enxergar a realidade”, sustenta Varma, e não é anormal que atravessem crises regulares.
— Não me surpreende que a relação atual entre os dois países seja difícil, pois se está em uma situação bem diferente. Os alemães fizeram a escolha de ter uma grande dependência energética em relação à Rússia, e hoje pagam literalmente o preço por isso. Estão tentando se distanciar, mas isso vai lhes custar tempo e dinheiro. No projeto de autonomia energética da UE, o ponto de partida é de muito longe.
Uma das consequências da guerra na Ucrânia foi o lançamento pela Comissão Europeia, em maio, do REPowerEU, programa que visa tornar a Europa independente do gás e petróleo russos até 2030 e investir maciçamente na produção de energias renováveis. Segundo o Eurostat, órgão de estatística da UE, a Europa importava mais de 50% de gás russo em janeiro de 2019, índice que caiu para 15% no primeiro trimestre de 2022.
A Europa reduziu o consumo de eletricidade nos últimos meses, pelo aumento de preços e as temperaturas amenas para a estação até agora. A previsão é de que passe o inverno de 2023 sem cortes. Resta a incógnita para o futuro.
Para Dominique Moïsi, conselheiro especial do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), a UE foi pega de surpresa na questão energética com a guerra na Ucrânia. Segundo ele, a Europa estava “legitimamente obcecada” com a questão ecológica e sobre como, lentamente, evoluir para fazer com que os países dependessem menos das energias mais poluentes.
Papel reforçado da Otan
A analista Sylvie Matelly, do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), acusa a Europa de, num primeiro momento, ter reagido à urgência energética individualmente, em vez de coordenar estratégias e investimentos.
— Fomos por todo lado no planeta fazer nosso mercado, cada um por si. E com uma facilidade desconcertante de virar a casaca. Certos governos, como a Arábia Saudita ou a Venezuela, que cheiravam mal, de repente voltaram a ser frequentáveis. Isso traduz uma hipocrisia e provoca uma perda de confiança na palavra dos países ricos. A curto prazo, os resultados foram positivos, 2022 ficou sob controle, mas a médio prazo há efeitos perversos evidentes. Vamos ver o que ocorrerá em 2023.
O conflito russo-ucraniano também afetou as ambições de uma Europa com maior autonomia em segurança e defesa, sobretudo em relação à Otan e aos EUA. Para Florent Marciacq, do Centro Internacional de Formação Europeia, as visões dos Estados-membros da UE sobre a defesa da Europa se tornaram agora ainda mais divergentes.
Moïsi recorda a declaração do presidente francês, Emmanuel Macron, em 2019, afirmando que a Otan estava em estado de “morte cerebral” e que as nações europeias não poderiam mais confiar nos EUA para assegurar sua defesa.
— De nenhuma maneira se poderia dizer isso hoje. A guerra teve um forte impacto sobre a Otan, que se tornou maior. A Rússia queria “finlandizar” a Ucrânia, e acabou “otanizando” a Finlândia e a Suécia [os dois países solicitaram adesão à Otan em maio]. Os EUA são o primeiro ator, de longe, na ajuda militar a Kiev — aponta o analista. — A guerra na Ucrânia reforçou as diferenças entre países na Europa que querem uma maior presença americana, como os do Leste e do Norte, e outros como a França, que pregam a autonomia estratégica do continente como vital, porque não se poderá contar eternamente com Washington. Mas o futuro da segurança europeia nos próximos anos passa por um reforço da garantia americana. Somente com a guerra resolvida se poderá repensar no plano europeu.
Matelly, do Iris, identifica dois movimentos na UE: um desejo de reforçar a soberania nacional, o parque industrial e uma política de defesa, e ao mesmo tempo investir mais na relação com os EUA.
— O interesse americano é frear o desejo da China de se tornar primeira potência mundial. Seremos empurrados a um alinhamento com os EUA, e isso terá consequências importantes para a economia europeia e o resto do mundo. Essa é uma grande questão para os anos vindouros, porque é um fator que vai dividir profundamente os europeus.
Divergências internas
O retorno da guerra na Europa impôs novos desafios para o continente, com repercussões que, na opinião de Marciacq, deverão perdurar após o conflito:
— Há muitas questões totalmente em aberto colocadas sobre a mesa por esta guerra. Infelizmente, por trás da frente de unidade, fruto da reação à agressão, inúmeras divergências entre os Estados-membros aparecem nos horizontes estratégicos para o futuro da UE.
O conflito, no entanto, para Moïsi, não está prestes a acabar e deve se estender indeterminadamente:
— A única negociação de paz possível será a que permita aos ucranianos afirmarem “ganhamos a guerra” e aos russos dizerem “não a perdemos”. E não vejo as condições para que esse duplo discurso seja usado em Kiev e Moscou.