Valor Econômico, v. 20, n. 4844 25/09/2019. Brasil, p. A4
 

Tom belicoso rompe tradição e põe em risco acordo com UE
Hugo Passarelli

 

O presidente Jair Bolsonaro quebrou a tradição conciliadora do Brasil ao abrir a Assembleia Geral das Nações Unidas ontem. Embora esperado, o tom contundente foi pouco simpático a uma ampla gama de públicos e pode servir de combustível a quem questiona a política ambiental do país, afirmam embaixadores e especialistas em relações externas ouvidos pelo Valor.

“É exatamente o oposto do que um presidente deve fazer na ONU. Como falar internacional, é nula”, afirma Rubens Ricupero, embaixador em Washington de 1991 a 1993. Segundo ele, Bolsonaro revelou em sua fala que não se importa com a opinião do restante do mundo nem com as possíveis consequências econômicas e comerciais dessas posições.

Desde a ampla repercussão mundial das queimadas na Amazônia, especialistas já enxergavam desdobramentos em assuntos caros ao país, como o avanço do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia (UE). E agora isso pode ter se cristalizado. “Se havia alguma esperança para o agronegócio e demais setores exportadores de que seria possível melhorar a nossa imagem, ela desaparece nesse discurso”, diz Ricupero.

O professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) Matias Spektor explica que, entre as nações europeias, notadamente a França, o tema ambiental tem sido usado como pretexto para justificar uma política protecionista. “Mas a fala do presidente servirá como um desempate aos países que ainda não haviam decidido sobre eventuais sanções”, diz.

O grupo mais moderado é liderado pela Alemanha, enquanto o grupo que defende uma atuação mais incisiva é encabeçado pela França, explica Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV. “Quem mais ganha é o Emmanuel Macron [presidente da França]. Ele pode dizer: vejam, a única maneira de lidar com o Brasil é com uma postura dura”, resume.

Diplomata e conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) Marcos Azambuja considerou positiva a abordagem da questão ambiental. “Há uma simplificação da questão amazônica que é constrangedora”, diz.

Para ele, a fala de Bolsonaro foi pouco diplomática e muda a percepção sobre o Brasil de “bem comportado orador”. “O discurso foi um resumo do pensamento dele, não nos fez amigos e mostrou pouca sensibilidade com as audiências globais”, diz.

“A menção pejorativa do outro em diplomacia é sempre perigosa”, diz, referindo-se aos ataques contundentes de Bolsonaro a temas como o socialismo, a imprensa mundial, as ONGs, o movimento indígena e, nominalmente, a países como Alemanha e a França.

Para o embaixador Ricupero, não há nenhum precedente, nem nos 21 anos de ditadura militar, de uma fala com esse grau de extremismo à direita. “Durante a ditadura, a abertura era um discurso clássico de chancelaria, de perfil mais técnico”, afirma.

O presidente também mandou um sinal mais claro aos líderes globais, diz Spektor, de que a relação diplomática central de seu governo é com os Estados Unidos. A evidência mais forte disso foi seu discurso ter praticamente seguido o “roteiro” de Donald Trump, mesmo que americano tenha falado depois.

“Bolsonaro desde sempre fez apostas de risco  máximo, foi assim que venceu a eleição e conduz a diplomacia, cujo sucesso agora depende de Trump ganhar a reeleição”, afirma.

A questão que se abre agora é a sustentabilidade desse posicionamento. “O discurso desse ponto de vista agrava muito o isolamento do Brasil em uma aposta de posicionamento político que já não deu muito certo pelo mundo afora”, diz Ricupero.

Ontem, a presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, anunciou abertura de processo de impeachment contra Trump.