Valor Econômico, v. 20, n. 4844 25/09/2019. Opinião, p. A12

Na ONU, Bolsonaro fala de conspiração contra soberania

 

Ao abrir a 74ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro apresentou um relato fiel, não do “novo Brasil” que esteve “à beira do socialismo”, mas de seu governo, suas ideias e obsessões. Com pinceladas retrógradas do discurso, como se os tempos da guerra fria e do combate ao comunismo ainda fossem atuais, Bolsonaro foi mais defensivo que propositivo, menos diplomático do que agressivo e mais ideológico do que pragmático. A diplomacia brasileira, especialmente nas questões ambientais, fez ao longo do tempo exatamente o contrário.

A reunião da ONU ocorre simultaneamente à Cúpula do Clima e em ambas as queimadas na Amazônia rondaram como um mau agouro. O presidente brasileiro foi econômico em palavras sobre elas, mas prolixo em relação à soberania do Brasil sobre a floresta, cuja agressão vem de anos, mas se intensificou agora - e não por acaso. O Brasil, desde pelo menos a Rio-92, esteve entre os principais atores na arena ambiental global, em um trabalho paciente que muitas vezes esteve acima de ações concretas que respaldassem sua atuação. No entanto, atos e palavras de Jair Bolsonaro, do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, da família presidencial e gurus de ocasião, destruíram essa imagem positiva e pró-ativa do país.

O presidente foi sincero. Ele não tem nada a prometer em relação ao ambiente. A Amazônia “não é patrimônio da humanidade”, disse Bolsonaro, mas brasileiro, intui-se nas entrelinhas. Na contramão das preocupações crescentes e disseminadas sobre como contrapor-se ao aquecimento global, o máximo que o presidente fez foi colocar o tema como subalterno “Nossa política é de tolerância zero para com a criminalidade, aí incluídos os crimes ambientais”. Sobre os incêndios na floresta, que se intensificaram e motivaram demissão do diretor do Inpe que apresentou os dados corretos à opinião pública, Bolsonaro os coloca na conta da sazonalidade - há seca e muito vento nesta época do ano, o que espalha facilmente o fogo - ou da pura má fé de seus inimigos. A Amazônia “não está sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia”.

O presidente repetiu os princípios de seu programa ambiental, ou, na verdade, de destruição ambiental. Eles se baseiam na exploração em terras indígenas, cujo habitante “não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas, especialmente as terras mais ricas do mundo”. Bolsonaro citou as reservas dos ianomâmis e a da Raposa Serra do Sol como passíveis de mineração de ouro, diamante, nióbio e terras raras. Esta seria uma atitude legítima, como procurou provar lendo uma carta do Grupo de Agricultores Indígenas, em contraposição à de líderes como o cacique Raoni, usado como “peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”. Mídia nacional, internacional e Ongs constituem a santa aliança do colonialismo contra a soberania nacional.

O Brasil se manterá no Acordo de Paris, mas deixando de cumprir suas metas. O país se comprometeu a reduzir em 37% as emissões até 2025, em relação às de 2005, e de até 43% em 2030. Para isso é preciso, entre outras coisas, restaurar 12 milhões de hectares de florestas e alcançar desmatamento ilegal zero na Amazônia. O governo sequer menciona ações nessa direção porque não dá qualquer sinal de que tenha interesse em persegui-las. Não há sequer convicção de que o aquecimento é induzido pela ação humana, como pensa também o presidente americano, Donald Trump que, como Bolsonaro, procura desmontar a legislação de preservação ambiental e minar por dentro os órgãos de fiscalização e controle.

Elaborada pelo presidente, seu filho Eduardo, que aspira às embaixada nos EUA, Filipe Martins, assessor para política internacional e Augusto Heleno, do GSI, a peça apresentada por Bolsonaro à ONU é essencialmente regressiva. A ONU não é a “Organização do Interesse Global”, disse Bolsonaro. O globalismo é parte de uma ideologia que “se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas”, invadiu lares para investir contra a família e, por fim, “invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus”.

Ao semear discórdia em um discurso marcadamente ideológico, em uma questão sensível como o aquecimento global, Bolsonaro arrisca-se a colher tempestades comerciais prejudiciais ao país no futuro.