Título: As ilusórias proibições
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 08/10/2005, País, p. A2

Toda proibição, por mais necessária pareça ser, é discutível, e quase sempre inútil. Todo plebiscito, por mais legítimo e democrático seja, é sempre perigoso. O mundo não é feito de "sim" ou "não", embora essa seja a chave dos sistemas digitais. Uma coisa é a razão matemática, em sua exatidão abstrata, para a medição dos fenômenos físicos. Outra é a imprecisa realidade social. Os eleitores brasileiros estão sendo chamados a decidir se o comércio e a posse de armas devem ser proibidos em nosso país. Toda decisão plebiscitária acarreta o risco de ser considerada dogma indiscutível. Revogar uma lei é relativamente fácil. Não é a mesma coisa revogar o resultado de um plebiscito. O plebiscito é decisão majoritária, algumas vezes equivocada, quando manipulada pelos recursos da propaganda.

Não há melhor intenção do que desarmar a população. Se não houver armas de fogo, os potenciais assassinos terão que se valer de outros instrumentos, alguns nem sempre à mão, como as ferramentas de trabalho e as simples facas de cozinha. Ficará mais difícil matar, o que pode trazer certo benefício. Assim pensavam também os bravos militantes da Liga da Temperança dos Estados Unidos que, desde 1830, pelejavam para que o álcool, responsável por tantas tragédias, principalmente entre os mais pobres, fosse terminantemente proibido. Em 1º de fevereiro de 1920, a Lei Volstead (War Prohibition Act, do republicano Andrew Volstead) entrava em vigor, proibindo a fabricação e o comércio de bebidas alcoólicas em todo o território americano, exceto para fins médicos e os ritos religiosos. Na véspera, a Liga da Temperança emitiu belo comunicado, em que se destacam as frases seguintes: "Esta noite, um minuto depois da meia-noite, nascerá uma nova nação. O demônio do álcool está redigindo seu testamento. Surge a era da razão clara e da vida pura. O reino das lágrimas acabou. Em breve, os bairros miseráveis serão coisa do passado. As prisões e as casas de correção ficarão vazias: nós as transformaremos em fábricas e em celeiros. Todos os homens recomeçarão a andar de pé, todas as mulheres e todas as crianças sorrirão felizes. As portas do inferno estarão fechadas para sempre".

Nos primeiros 12 meses houve razão para o otimismo: caíram os homicídios, diminuíram as rixas familiares. A partir do ano seguinte, no entanto, o crime se organizou, "para dar à sociedade o que a sociedade queria", conforme testemunhos da época. A partir de 1921, o consumo de cerveja começou a crescer, para chegar, em 1933, a mais de 700% do que se consumia em 1919; o de aguardentes baratas cresceu 433% e o de uísque, 270%. O número de bares subiu de 15 mil para 32 mil, apenas no primeiro ano da proibição. Nos primeiros dez anos houve 500 mil detenções associadas ao uso do álcool, morreram 2 mil pessoas só na guerra de gangues, e 35 mil por intoxicação alcoólica. Nesse particular há duas cifras precisas: entre fevereiro de 1919 e fevereiro de 1920, antes da proibição, morreram por embriaguez 1.064 pessoas; em 1925, os mortos chegaram a 4.154, de acordo com as estatísticas oficiais. Os crimes cresceram 24% somente entre 1921 e 1922. Os homicídios, de seis casos por 100 mil habitantes em 1920, subiram para dez, durante a proibição e começaram a cair a partir de 1933, quando a Lei Volstead foi revogada, para chegar a cinco, em 1942 (Herbert Ashbury, An informal History of Prohibition, 1950, Kennet Alsop, The Bootleggers, Londres, 1961; Hans Enzensberger, Chicago-ballade, Modell Einer terroristischen Geselschaft, Frankfurt, 1962).

Baseados nesses números, são crescentes os defensores do fim da proibição das drogas (que, por sinal, começaram a ter seu consumo popularizado durante a Lei Seca). O caso das armas é outro, é bem verdade. Mas como se trata de uma proibição, e as proibições nada resolvem, como não resolveram com o álcool, nem resolvem hoje com o tráfico de drogas, conviria pensar bem, antes de transformar as boas intenções dos honrados cidadãos em novo negócio para o crime organizado.

De acordo com as leis vigentes, o porte de armas é rigorosamente restrito àquelas pessoas que necessitam usá-las. Isso não impede que tantas outras, sem permissão, as levem em seus automóveis e as tenham em casa. Quem não quer armas não as tem, hoje, nem as terá amanhã. Quem as quer, e não as pode ter de acordo com a lei, irá buscá-las no mercado negro. Há sempre um "imprenditóre", como foi Al Capone, para dar à sociedade o que a sociedade quiser. Embora o porte de uma arma de fogo contribua para o crime, e possa, mesmo, incitar aos assassinatos fúteis, quando há o ânimo de matar qualquer coisa serve. É provável que a maioria dos assassinatos domésticos se dê com instrumentos de ocasião, como tesouras, facas, mãos-de-pilão, sem falar nos estrangulamentos, nas asfixias, no uso de venenos - e nas barras de ferro, com cujos golpes costumam morrer os pais em seus leitos.

Caim não usou um trinta-e-oito para matar seu irmão, nem os cruzados conheciam a pólvora. E Hitler, sempre que possível, preferia o gás Zyclon-B: silencioso, limpo, de múltiplo efeito, indolor e eficaz