Valor Econômico, v. 20, n. 4845 26/09/2019. Opinião, p. A19
 

Reforma tributária talvez só em 2021
 Nilson Teixeira

 

O Brasil precisava aprovar uma reforma da Previdência Social para evitar um colapso nas contas públicas. Até fim de outubro, essa missão terá sido cumprida. Mas isso não é suficiente. O governo tem que avançar em outras frentes para reduzir o risco fiscal, melhorar o ambiente de negócios, elevar o crescimento potencial do país, ampliar os investimentos e a produtividade, expandir o mercado de trabalho e criar condições para o país se tornar menos injusto.

A maioria dos participantes do mercado prevê que a reforma tributária será o próximo passo nesse caminho. Uma reforma abrangente precisa corrigir a regressividade do atual sistema, aumentando os impostos sobre os mais ricos. O problema é que a maior parte desse grupo não se vê como elite financeira e julga que suas vantagens fiscais são justificáveis. Essa percepção, a elevada carga de impostos e o fato de que os grupos mais privilegiados são também os mais bem organizados e influentes dificultam a eliminação de distorções. Expectativas de que a reforma diminuirá bastante os impostos sobre bens e serviços, são irrealistas.

Haverá também uma disputa entre setores. Representantes da indústria buscarão uma diminuição da sua carga tributária em termos relativos, frente à baixa incidência de impostos sobre os serviços e a agropecuária. Todavia, a probabilidade de haver esse reequilíbrio é reduzida, dada a forte influência no Congresso dos representantes desse último segmento.

Em outra frente, os Estados e municípios demandam maior participação na arrecadação. A União, por outro lado, pleiteará que esse eventual aumento seja acompanhado pela transferência de vários gastos, hoje da responsabilidade do governo federal, para os governos regionais. Dispêndios relativos à educação e à saúde são os mais mencionados. Essa transferência faz todo sentido, mas se torna questionável quando um de seus objetivos é o de atenuar restrições impostas pela regra do teto dos gastos sobre o governo federal.

Os conflitos entre os próprios entes da federação não serão menores. A definição da nova partilha de impostos entre os Estados em que ocorre a produção de bens e aqueles em que acontece o seu consumo é controversa. Apesar do acordo recente entre os secretários de Fazenda dos Estados, os investimentos públicos e os benefícios tributários oferecidos em troca da implantação de empresas em suas áreas estimularam a guerra fiscal, cuja reversão exigirá prazos dilatados até o fim de seus efeitos.

Os entes federativos geralmente exigem compensação financeira para o caso de perda de arrecadação com a implementação de um novo código tributário. A maioria dos países em que houve mudanças expressivas do sistema tributário atenuou os conflitos com o aumento de impostos. Esse tende a ser o resultado também no Brasil. Expectativas de que a reforma diminuirá enormemente os impostos incidentes sobre bens e serviços, e que isso estimulará a atividade, são completamente irrealistas, ainda mais à luz do expressivo déficit primário do setor público.

Uma reforma tributária ampla precisa ser acompanhada da reavaliação de renúncias de impostos e contribuições que superam 4% do PIB. Essa revisão tem que garantir a manutenção apenas dos gastos tributários que comprovem que seus benefícios são muito superiores às perdas financeiras incorridas. A reforma não pode assumir a manutenção desses privilégios sem um debate profundo.

Seria um erro iniciar uma reforma mantendo renúncias tributárias como, por exemplo, as do Simples (R$ 83 bilhões), as da Zona Franca de Manaus (R$ 23 bilhões) e as dos abatimentos no IRPF para a saúde (R$ 17,2 bilhões) e a educação (R$ 4,7 bilhões). O corte dessas renúncias reduziria a regressividade do sistema, pois a maioria delas foi obtida por grupos de interesse influentes e que não ofereceram nenhuma quantificação robusta sobre seus benefícios.

A predisposição da população e de seus representantes no Congresso de aceitar a alta de impostos em troca de um sistema tributário mais simples e equânime é reduzida. Assim como a reforma previdenciária, uma profunda reforma tributária também exigirá um amplo debate no parlamento e na sociedade. A reversão dessa rejeição demandará esforço do governo, apesar de o tema já estar sendo debatido desde meados da década passada.

O prazo para aprovação de um ajuste dessa magnitude é incerto, ainda mais com o término do período de lua de mel do governo com o Congresso. O declínio da taxa de aprovação do presidente Jair Bolsonaro e as eleições municipais no próximo ano tendem a dificultar ainda mais a evolução das discussões, contribuindo para que a votação nas casas legislativas venha a ocorrer talvez só em 2021.

Apesar de a urgência desse debate ser óbvia, só mais recentemente houve maior direcionamento da discussão. Mesmo assim, não é claro qual será o eixo central das discussões, pois há duas propostas no Congresso: uma em tramitação no Senado - inspirada na proposta do Centro de Cidadania Fiscal - e outra em tramitação na Câmara dos Deputados  - iniciada sob a relatoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly. Essas versões tendem a perder relevância com a apresentação do projeto do governo nos próximos meses. A desistência da equipe econômica de reintroduzir a CPMF está exigindo, provavelmente, uma reestruturação da sua proposta, o que tende a postergar sua divulgação.

Em suma, a discussão sobre a reforma tributária seguirá um longo trajeto antes de sua votação no Congresso. É muito otimismo assumir sua aprovação neste ano e mesmo no 1º semestre de 2020. Para que isso ocorra em um prazo mais curto, será preciso que o governo agilize a apresentação do seu projeto e que o presidente se envolva diretamente no convencimento da população e de seus representantes. Esse empenho terá que envolver a construção de um grande acordo com os governadores, prefeitos das principais cidades e, principalmente, parlamentares.

Sem esse esforço e na ausência de um amplo debate envolvendo toda a sociedade, a Reforma Tributária dificilmente terá a magnitude necessária para pavimentar o caminho na direção de um Brasil melhor.