O Globo, n. 32672, 19/01/2023. Política, p. 8
Ibaneis foi avisado do risco de sabotagem ao nomear Torres
Entrevista: Celina Leão
Apesar de bolsonarista, Celina Leão, governadora em exercício do Distrito Federal após o afastamento de Ibaneis Rocha, defende que o ex-presidente poderia ter evitado o cenário político atual com uma "fala firme". Alinhada ao discurso do mandatário retirado do posto por 90 dias em virtude de uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), Leão afirma também que o Exército impediu a retirada de manifestantes acampados em Brasília, que acabou palco da invasão de extremistas que atacaram as sedes dos três Poderes.
Como a senhora foi informada dos atos golpistas do dia 8 de Janeiro?
Acompanhei a situação ao lado dos ministros Flávio Dino (Justiça), José Múcio (Defesa) e Alexandre Padilha (Relações Governamentais). Fiz contato com o então comandante-geral da PM (coronel Fábio Augusto Vieira, hoje preso), e ele me dava um “feedback” em tempo real. Só saí de lá quando os três Poderes foram retomados e com a decisão da federalização (da Segurança Pública).
O governador afastado, Ibaneis Rocha, disse acreditar que houve “sabotagem” no esquema de segurança do dia 8 em Brasília. A senhora concorda?
Eu acredito (em sabotagem) também.
O governador errou ao nomear o ex-ministro Anderson Torres para comandar a Secretaria de Segurança?
Talvez a boa-fé do governador o tenha colocado nessa situação, por não acreditar que poderia ser sabotado, mesmo tendo sido alertado por diversas pessoas. Ele quis nomeá-lo, apesar do pedido formal do PT para evitar. Ele (Ibaneis) dizia que Anderson havia sido secretário antes e que não houve problema.
A senhora foi contra a nomeação de Anderson Torres?
A minha opinião sempre foi que (a nomeação de Torres) causaria problemas tanto para ele (Ibaneis) quanto a Anderson. Mas eu não imaginava que aconteceria o que aconteceu.
Algo chamou a atenção na atuação de Torres?
Eu só estranhei muito a viagem dele (para passar férias nos EUA). Ele disse que estava muito cansado e que fazia tempo que não ficava com a família.
Qual foi a última vez que a senhora falou com Anderson Torres?
Foi numa reunião de secretários, na véspera da viagem.
E com Ibaneis?
Foi no dia da crise. Fui dormir e acordei com a decisão (do ministro Alexandre de Moraes, do STF) na madrugada do afastamento.
Aliados do governador temem que a senhora articule para ficar com o cargo. Como responde a isso?
As pessoas falam o que elas são. A minha lealdade e meu compromisso fizeram com que Ibaneis me escolhesse para a vice-governadoria. O governador Ibaneis sabe quem sou. Eu assumirei o governo por oito meses, já que ele deve se candidatar a outro cargo (em 2026). A minha sucessão é considerada natural.
Filiada ao PP, a senhora foi cobrada por sua base por ter se reunido com o presidente Lula junto com outros governadores?
Não há como agradar a todos. Você recebe uma enxurrada de mensagens. Tenho mais medo de não fazer o que é correto do que das críticas.
Os manifestantes bolsonaristas ficaram dois meses em frente ao quartel-general do Exército. Na sua opinião, os militares deveriam ter removido o acampamento?
O governo do Distrito Federal tentou retirar o acampamento e foi impedido pelo Exército. Quando você coloca a Polícia Militar para tirar os manifestantes e o Exército não deixa, há um erro de comando entre as forças. O inquérito (aberto pelo STF para apurar omissões de autoridades, que levou Anderson Torres para a cadeia e decretou o afastamento de Ibaneis) vai descobrir.
A senhora apoiou Bolsonaro nas eleições e viajou o país com a ex-primeira-dama Michelle. A senhora mantém contato com a família?
Não tive mais contato. Quantos governadores são da base de Bolsonaro? A maioria. Esse tipo de acusação: “Ah, foi eleita na base do Bolsonaro”... Qual é a importância disso? A minha base eleitoral aqui é a do Bolsonaro, a direita. Isso se chama democracia. O que não é democracia é a invasão dos Poderes. Qual é o problema de ter feito a campanha com a Michelle? Nenhum.
Como fazer essa distinção entre ser de direita e não apoiar o radicalismo?
Eu tenho quatro mandatos. Minha vida é pregressa a Bolsonaro virar presidente. Como fala o presidente da Câmara, Arthur (Lira), cada um tem um CPF. O meu comportamento sempre foi respeitoso, construtivo, nem de esquerda e nem direita. Os grandes líderes do Brasil precisam parar de falar mal dos eleitores do Bolsonaro. E bolsonaristas precisam parar de falar mal de eleitores do Lula. As pessoas vão brigar até quando? Até termos aqui um estado de exceção?
Como a senhora avalia o prejuízo político para o ex-presidente Bolsonaro após os atos golpistas? Um dos invasores do Planalto, por exemplo, usava uma camisa com o rosto dele.
É um momento delicado para todo mundo, inclusive para o ex-presidente. Talvez ele faça uma reflexão de alguns momentos graves que nós vivemos no Brasil, em que não houve diálogo nem temperança, que isso afetou esse momento que estamos vivendo.
O ex-presidente Bolsonaro errou ao silenciar diante dos atos que contestavam o resultado da eleição?
Se houvesse uma fala firme dele, não teríamos o cenário atual. Por outro lado, o movimento estava tão extremado que, talvez, a preocupação dele era perder os apoiadores se falasse. Nesse cenário, o prejuízo teria sido menor do que o prejuízo que está acontecendo agora.