O Globo, n. 32675, 22/01/2023. Mundo, p. 24

Reconstruir pontes na América Latina será desafio de Lula em primeira viagem ao exterior

Jeniffer Gularte
Eliane Oliveira


Ao desembarcar em Buenos Aires na noite de hoje, Luiz Inácio Lula da Silva iniciará as viagens internacionais de seu terceiro mandato com a missão e o simbolismo de priorizar a integração da América Latina, além de se diferenciar de Jair Bolsonaro — que nunca escondeu que a relação com os vizinhos não era sua prioridade. Reconstruir pontes, porém, será um trabalho muito mais desafiador que o encontrado pelo petista em seu primeiro governo, há 20 anos.

Crise econômica na Argentina, convulsão política no Peru e isolamento de países como Cuba e Venezuela são exemplos de um cenário mais intricado para o brasileiro, que na Argentina participa da reunião da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) na terça e, no dia seguinte, visita o Uruguai.

— A integração agora é mais importante do que há 20 anos, para que permita que a região tenha voz em um mundo muito mais complexo. — afirmou Celso Amorim, ex-chanceler do primeiro período do petista no Planalto e atual assessor especial do presidente para assuntos internacionais.

A polarização política e ideológica afeta a região. Os exemplos são variados. O mexicano Andrés Manuel López Obrador, de esquerda, tenta mudar a lei eleitoral para reduzir a força da oposição em seu país com um discurso de contestação do sistema que lembra declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Brasil. A situação do Peru — onde há dezenas de mortos em protestos contra a presidente Dina Boluarte, que sucedeu a Pedro Castillo após sua destituição por um autogolpe frustrado — pode roubar a pauta do encontro regional.

Acima da ideologia

Há também uma divisão entre os vizinhos no que se refere à aceitação dos regimes de Cuba e da Venezuela. O próprio chileno Gabriel Boric, que é de esquerda, mantém uma posição crítica em relação à condução política do venezuelano Nicolás Maduro. No encontro na Argentina, Lula argumentará com os colegas que isolar um país é um erro. Como prova, o presidente brasileiro deve manter entre quatro ou cinco reuniões bilaterais com chefes de estados, incluindo com Maduro e o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel.

Já ao conversar com os presidentes da Argentina, o esquerdista Alberto Fernández, e do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, de direita, Lula quer passar a mensagem de que promover a integração está acima da pauta ideológica.

— Sempre fizemos dessa forma. Recebíamos o Hugo Chávez (ex-mandatário de esquerda da Venezuela) e também o Álvaro Uribe (ex-líder de direita da Colômbia). O presidente quer ter uma relação de Estado. O Uruguai é um país muito importante para o equilíbrio das relações na América Latina — disse Amorim.

Retomando a tradição da diplomacia brasileira de a Argentina ser o destino da primeira viagem do presidente no cargo, Lula irá amanhã à Casa Rosada, onde discutirá com Fernández a agenda econômica de interesses em comum e abordará pontos de convergência após a relação entre os dois países ter ficado abalada durante o governo Bolsonaro. Será assinado um acordo de ciência e tecnologia para a Antártida que também envolverá cooperação logística. O país vizinho, nosso maior parcerio comercial do Mercosul, registrou no ano passado uma inflação anual de 94,8%, a maior em 32 anos. Lula e Fernandez deverão discutir parcerias com “efeitos concretos rápidos”, como as ligadas a crédito e exportação.

— A ida de Lula neste momento traz conotação importante. É a restauração dos laços que ficaram enfraquecidos; é como se Brasil estivesse estendendo a mão a seu amigo pessoal, Fernández — avaliou Dawisson Belém Lopes, o professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Fernández chegou a visitar Lula na prisão, em Curitiba, e esteve com o petista em São Paulo no dia seguinte à sua vitória no segundo turno. Bolsonaro, por sua vez, esteve na Argentina só em junho de 2019, quando o presidente era Maurício Macri. Durante a campanha eleitoral, o governo argentino entregou a Lula uma proposta de acordos que prevê integração bilateral nas áreas financeiras, com acordos entre bancos públicos, e nas de energia, mineral e agronegócio, com a eliminação das barreiras sanitárias entre os dois países. Os argentinos também propõem parcerias com integração das fronteiras nas áreas de defesa, saúde e educação.

No Uruguai, Lula se empenhará em reorganizar a relação do Brasil com o vizinho. Um dos pontos a serem discutidos com Lacalle Pou é a negociação entre Uruguai e China de um acordo de livre comércio sem os demais sócios do Mercosul. Um interlocutor do governo disse ao GLOBO que é preciso encontrar formas de os uruguaios crescerem sem prejudicar a estrutura do bloco.

Ações regionais

A Celac, cuja criação foi definida em 2008 na Bahia, foi oficialmente abandonada pelo Brasil em 2019, no governo Bolsonaro. No discurso que vai marcar o retorno do Brasil a esse fórum, Lula vai pontuar como o compromisso com a integração entre os países da América Latina é importante não só para a região, mas para o mundo. O presidente deve tratar de temas em que a cooperação é fundamental, como a questão do clima e da paz.

A Celac é formada por todos os 33 países da região latino-americana e caribenha e está sob o comando de Fernández. Além do diálogo político e da cooperação regional, a comunidade promove a discussão em conjunto de temas como segurança alimentar e energética, saúde, inclusão social, desenvolvimento sustentável, transformação digital e infraestrutura para a integração.

Pesquisador em Harvard e conselheiro consultivo do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Hussein Kalout avalia que, com a região passando por um período de instabilidade, o papel do Brasil será ainda mais desafiador. Ao mesmo tempo, ele acredita que a reinserção do país entre os vizinhos será vital para os interesses estratégicos do governo brasileiro.

— Lula não conseguirá grandes avanços somente com palavras bonitas e discursos refinados. É preciso ação — destacou Kalout.

Segundo ele, o Brasil precisa restaurar sua capacidade de reintegrar e desenvolver a região com a apresentação de projetos concretos e tangíveis nessa nova etapa, e não apenas reeditar projetos antigos. Lula terá de mostrar sua visão sobre mudança climática e defender a necessidade de uma nova matriz energética regional. Outra ações esperadas do líder brasileiro, na opinião do especialista, são uma estratégia de cooperação centrada no combate a eventuais epidemias e pandemias e o aprimoramento de regras sanitárias e fitossanitárias conjuntas no âmbito do Mercosul.

— Além disso, é preciso trabalhar de forma coordenada no combate a desinformação e fake news, que têm impacto imenso nas cadeias econômicas e no fluxo de investimentos, e, não menos importante, reestruturar o diálogo na região sobre segurança hemisférica — completou.