Título: ''Brasil já é um líder na Bioética''
Autor: André Augusto Castro, da UnB Agência
Fonte: Jornal do Brasil, 08/10/2005, Brasília, p. D5

Depois de sete documentos preliminares firmados em reuniões realizadas desde 2003 pelos países integrantes do Comitê de Bioética da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos ganhou uma cara mais humana e menos técnico-científica. O documento será homologado na assembléia anual da Unesco que acontecerá em Paris, capital francesa e sede da entidade, no dia 10 de outubro. Único especialista brasileiro nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para auxiliar a delegação brasileira na Unesco nas discussões, o professor Volnei Garrafa, diretor da Cátedra Unesco de Bioética da UnB, conta que, nos bastidores, o trâmite do documento foi complicado e marcado pela briga entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os primeiros queriam manter o caráter técnico e focado na biotecnologia, enquanto o segundo grupo pressionou por uma politização da declaração que, uma vez homologada, orientará as discussões sobre bioética em todo o mundo. A queda de braço foi vencida, em parte, pelos países em desenvolvimento e a atuação da delegação brasileira foi decisiva para isso. Liderando o bloco dos países em desenvolvimento e apoiado por nações da América Latina, Ásia e África nas mesmas condições, o Brasil conseguiu incluir a proteção aos seres humanos e ao meio ambiente na declaração, a contragosto de países como Estados Unidos e Alemanha. Garrafa chegou ontem a Paris, onde acompanhará a reunião que homologará a declaração.

Qual foi a maior dificuldade durante as discussões para formatação da declaração? ¿ Agregar questões sociais e ambientais ao documento. O grupo de países ricos, liderado por Alemanha e Estados Unidos, queria uma declaração técnica, voltada para o desenvolvimento da biotecnologia. Enquanto isso, para os países em desenvolvimento, temas como a proteção dos sujeitos de pesquisa (seres humanos que participam dos experimentos e testam novas drogas) e a garantia de acesso à saúde para todos eram mais importantes. Tivemos duas reuniões, uma entre 6 e 8 de abril de 2005 e outra entre 20 e 24 de junho. Na primeira, não se avançou nada porque os ricos não queriam admitir a possibilidade de inclusão desses temas. E, na segunda, muito tensa, conseguimos emplacar nossas idéias.

Como foi a batalha? ¿ Muito dura e tensa. Os norte-americanos chegaram a pedir a suspensão da segunda reunião, mas o embaixador brasileiro na Unesco, Antônio Augusto Dayrell de Lima, afirmou que não assinaria o documento porque, da forma como estava, não condizia com o interesse dos países em desenvolvimento. Foi até emocionante porque logo depois do discurso dele seguiu-se uma série de pronunciamentos de outros países (como Índia, África do Sul, Síria) reforçando a posição. Ao final, os mais ricos reconheceram a necessidade de a declaração defender o acesso à saúde e medicamentos, um grande avanço entre muitos outros. O grande problema dos debates é que a declaração tem de ser consensual. Se alguém não concordar, volta-se tudo e a discussão recomeça.

Como foi feita essa articulação? ¿ A mão brasileira foi essencial para isso e a equipe do Itamaraty, chefiada por Dayrell de Lima, estava impressionantemente bem preparada e muito bem informada sobre o tema em nível mundial. Além disso, a existência da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco foi fundamental para garantir a articulação política em torno de interesses comuns. O conhecimento mútuo foi essencial para os avanços obtidos. O Brasil não força a barra para exercer a liderança, isso é uma posição até natural porque todos esperam o que os brasileiros têm a dizer. E a nova postura de não ter medo, adotada pelo governo no cenário internacional, facilita isso.

Qual era a expectativa dos países ricos? ¿ Aprovar uma declaração técnica. Eles já têm seus problemas básicos de qualidade de vida resolvidos e por isso querem avançar mais na questão das pesquisas. Queriam evitar a politização do documento e só discutir o que é importante para eles. Isso reforça o interesse de dominação e manutenção da situação de dependência dos países em desenvolvimento.

O que acontece depois da homologação? Qual a importância da declaração? ¿ A partir da assinatura por todos os países presentes à assembléia, o documento será difundido em todo o mundo nos idiomas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU) - inglês, francês, espanhol, chinês, russo e árabe ¿ e passa a estabelecer parâmetros para as discussões de bioética. Não é uma lei, mas traz recomendações importantes.

Ainda existem diferenças muito grandes entre países ricos, em desenvolvimento e pobres? ¿ Claramente. E a clivagem vem aumentando. Até mesmo nas entidades de bioética já percebemos uma certa segregação. Os ricos estão fazendo um colonialismo ético no mundo por meio de cursos e treinamento de pesquisadores dos países periféricos. Assim, eles transmitem a visão de pesquisa que eles querem impor de forma muito sutil. Em reuniões como as preparatórias da declaração, atuam também com sutileza, trocando palavras e vírgulas que, ao final, acabam mudando conceitos do documento. Por isso, a homologação do documento como ele está pode ser considerada uma grande vitória.

Como estão as discussões da bioética no Brasil? ¿ Essa é uma situação paradoxal. Apesar de estarmos atrasados em relação a temas como aborto, eutanásia e pesquisa com embriões, somos uma liderança mundial. Fiquei muito honrado por ser o único especialista brasileiro a participar da discussão e pude perceber, nitidamente, que fazemos uma bioética muito avançada aqui, em detrimento desses atrasos. Nossa legislação está muito aquém da nossa produção acadêmica na área. Temos necessidades muito claras, como a criação do Conselho Nacional de Bioética.

Em que pé está essa discussão? ¿ Entre abril e dezembro de 2004, foi formada uma comissão para discutir a estruturação desse conselho. O documento está pronto, aguardando um posicionamento da presidência. É uma questão urgente. Para se ter idéia, a França tem desde 1982 e a Itália desde 1990. Ele será composto por 21 integrantes (três da área de Bioética, seis da sociedade civil, três especialistas em Ciências Sociais e Humanas, três especialistas em Ciências da Terra, três de Ciências Biológicas e Saúde e três indicados pelo presidente Lula). A formulação do documento foi precedida por seis audiências públicas em todas as regiões do país e a expectativa é que o conselho consiga atuar para facilitar o avanço da legislação, ajudando a superar a ação de lobbies no Congresso porque os projetos de Lei chegarão mais bem estruturados e trabalhados. Mas, infelizmente, não há como prever quando o Conselho Nacional de Bioética sairá do papel.