Valor Econômico, v. 20, n. 4847 28/09/2019. Opinião, p. A19
 

A macroeconomia da política fiscal
 Manoel Pires

 

Desde o início da recessão, o debate de política fiscal se voltou para conter o déficit e estabilizar a dívida pública. A estabilidade da dívida pública depende da taxa real de juros e crescimento econômico, do resultado primário e da receita de senhoriagem que é o benefício do governo por ser monopolista na emissão de moeda.

Dentre os determinantes da dívida pública e deixando a senhoriagem de lado, o governo possui maior controle sobre o resultado primário devendo elevá-lo se a taxa real de juros sobe ou se há desaceleração do crescimento e vice-versa. Mas tanto juros e crescimento são endógenos a outros fatores e a realidade é que a nova sequência de redução de taxas de juros direciona o país no caminho da sustentabilidade fiscal.

Em artigo escrito em parceria com meus colegas Bráulio Borges e Gilberto Borça, mostramos que a taxa Selic deveria ter caído de forma mais acelerada no primeiro semestre. Dependendo do modelo, a Selic poderia estar entre 3,75% e 4,75%. Recentemente, vários profissionais e instituições financeiras projetam a Selic entre 4% e 4,75%.

A redução da Selic e, por conseguinte, das taxas de juros da dívida resultam na redução do resultado primário de equilíbrio necessário para estabilizar a dívida. Para ilustrar a situação, apresento simulações de resultado primário de equilíbrio para diferentes cenários de taxa Selic e de crescimento. Essas projeções consideram a existência de spread de juros de 1,7 ponto percentual, IPCA de 3,75%, diferença entre IPCA e deflator do PIB de 0,7 p.p. e base monetária de 4,5% do PIB.

As simulações indicam que é possível e provável que a dívida pública se estabilize nos próximos anos com déficits primários. Em meu cenário preferido, com Selic de 4,5% ou 4,75% e crescimento de 2%, o resultado primário de equilíbrio estaria entre um déficit de 0,30% e 0,49% do PIB. A média de todas as simulações indica que o déficit primário de equilíbrio seria de 0,39% do PIB. É possível e provável que a dívida pública se estabilize nos próximos anos com déficits primários.

Qual a probabilidade desse cenário se confirmar nos próximos anos? Em primeiro lugar, o cenário de crescimento é conservador tendo em vista que o Brasil possui capacidade ociosa e taxa de desemprego e subemprego elevada. É factível crescer acumulando trabalho e capital, no curto prazo. O limite para o crescimento, dado pela baixa produtividade, é uma restrição futura que deve ser enfrentada. Nos últimos dias, o Congresso Nacional aprovou o marco regulatório das telecomunicações e há discussões importantes como petróleo e gás e a reforma tributária que resultarão em crescimento.

Em segundo lugar, a probabilidade de que a taxa de juros permaneça em patamares baixos também é elevada. No curto prazo, a capacidade ociosa, a contração do gasto e do crédito público e a elevada liquidez internacional, exercem pressões baixistas sobre a taxa Selic. No longo prazo, o Brasil passa por um processo de envelhecimento demográfico bastante acelerado que reforçará essa tendência.

Um observador pode concluir que há um esforço fiscal expressivo a ser feito, pois o resultado primário acumulado em 12 meses está em -1,41% do PIB. Ocorre que essa não é a métrica mais adequada para abordar o problema. O resultado primário é contaminado por uma série de efeitos de curto prazo, como eventos não recorrentes e pelo ciclo econômico que está desfavorável. Para expurgar esses efeitos e ter uma visão da condição de longo prazo da política fiscal, calcula-se o resultado primário estrutural.

O resultado primário estrutural calculado pelo governo indica que o déficit primário atingiu 0,7% do PIB em 2018. Considerando a evolução da política fiscal em 2019 e o orçamento de 2020, minhas estimativas apontam que o resultado estrutural atingirá um déficit de 0,29% do PIB. Na metodologia divulgada pelo Observatório de Política Fiscal, calculada por Bráulio Borges, a estimativa é que, em 2020, o resultado primário estrutural seja positivo em 0,15% do PIB potencial. Assim, em ambos os casos, o que já foi definido para 2020 assegura a sustentabilidade fiscal na maior parte das situações simuladas.

Uma das prioridades deveria ser recuperar a economia e fechar o hiato do produto para o resultado fiscal melhorar de forma mais evidente. Ao verificar a questão a partir dessa ótica, o debate se volta para a margem de segurança que o governo deseja obter e a velocidade que deve impor para a queda da dívida nos próximos anos. É recomendável trabalhar com uma margem de segurança para absorver choques no futuro, mas não há nenhuma necessidade de manter um ajuste criando uma situação de paralisia das atividades governamentais e baixo investimento. O debate fiscal deve se voltar para as reformas que gerem crescimento e produtividade.

Essas projeções podem ser questionadas por hipóteses mais pessimistas. O mais importante é perceber que o governo voltou a ter os instrumentos necessários para resolver a situação, o que significa dizer que o problema está sob controle. Com a aprovação da reforma da previdência, é possível alcançar um resultado estrutural melhor cortando algumas renúncias fiscais ou contendo os salários públicos, medidas que estão no rol de possibilidades da política econômica.

É evidente que o mercado já percebeu essa situação, razão pela qual não balançou com a discussão mais aberta que surgiu de possíveis mudanças no teto de gastos, após o endosso presidencial, ou mesmo da ausência de medidas depois do envio do orçamento para o Congresso. Em função dessa perspectiva os títulos públicos se valorizaram de forma substancial: uma NTN-B com vencimento em 2045 apresentou valorização superior a 70% nos últimos 12 meses. Não fosse assim, caberia perguntar em qual mercado um título emitido diante de tanto risco se valoriza tanto? A fase do desequilíbrio fiscal estrutural parece já ter passado.