O Globo, n. 32677, 24/01/2023. Mundo, p. 16

Nem o futebol separa

Jeniffer Gularte


A primeira viagem internacional de Luiz Inácio Lula da Silva em seu terceiro mandato entra em seu segundo dia nesta terça-feira com a cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em Buenos Aires. O evento marca a reinserção do Brasil na organização, após quatro anos de uma política externa que, sob o comando de Jair Bolsonaro, escanteou a região e menosprezou iniciativas multilaterais.

Segundo a agenda mais recente, o encontro começa às 10h, com uma fala do presidente argentino, Alberto Fernández, seguido por seu chanceler, Santiago Cafiero. A primeira sessão plenária deve começar meia-hora depois, com a foto oficial marcada para pouco depois das 13h, concretizando a volta do Brasil para a organização cuja criação foi definida em 2008 na Bahia, mas foi oficialmente abandonada por Bolsonaro em 2019.

Lula deve participar do almoço oferecido por Fernández, com quem se encontrou e assinou uma série de acordos na segunda, antes da sessão da tarde. Mais para o fim do dia, deve se encontrar também com o diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Qu Dongyu, e com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel.

O presidente deve ainda ter uma reunião bilateral com a primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley, que ganhou notoriedade internacional por suas duras falas demandando maior compromisso internacional com o combate às mudanças climáticas. Às 16h30, segundo a agenda mais recente, Lula deve se encontrar com o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, antes do encerramento da cúpula da Celac e da assinatura de sua declaração.

O petista desembarcou na capital argentina no domingo, mas teve sua primeira agenda oficial no dia seguinte, começando com tom ufanista e prometendo à Argentina “a melhor relação entre dois países de todo o mundo”. Ao lado de Fernández, o petista não escondeu a amizade com seu colega, defendeu a integração baseada em investimentos — e em um polêmico estudo de moeda comum entre os dois países — e até disse que, na Copa de 2022, torceu pelo país vizinho, por acreditar que Lionel Messi merecia ser campeão.

— Hoje é o começo de uma nova história. Estejam certos que a Argentina será tratada com o carinho e o respeito que ela sempre mereceu. Que nem o futebol será motivo de nos dividir porque os interesses econômicos de nossos torcedores são maiores que os dirigentes de nossos países — disse Lula, arrancando risos do colega. — No que depender do Brasil, pode ficar certo de que seremos parceiros de todas as horas.

Críticas a Bolsonaro

Em sua fala de boas-vindas, Alberto Fernández — amigo pessoal de Lula, a quem visitou na prisão em Curitiba e no dia seguinte á vitória no segundo turno, em São Paulo — disse que teve uma “reunião maravilhosa” com Lula e sua equipe. Ele disse ter certeza de que ambos os países estão lançando um vínculo muito mais profundo que “vai durar por várias décadas”, disse ele, chamando Lula de “amigo”, “grande estadista” e “líder regional”.

— Quero que você saiba, querido amigo Lula, que a Argentina estará ao seu lado sempre e não permitirá que um delirante ponha em perigo instituições brasileiras. Nós não vamos permitir que um fascista se aposse da soberania popular. Nós nos conhecemos há muitos anos e sabemos que nossos povos só querem viver em paz e não querem o ódio — disse o argentino.

Apesar do clima de “celebração”, os acordos firmados entre os dois presidentes, na maior parte das vezes, se tornaram carta de intenções ou criação de grupos de trabalho, com exceção de um documento que detalha um aprofundamento da atuação conjunta na Antártida. Fora isso, os dois presidentes assinaram declarações de intenções nas áreas de ciência e tecnologia, saúde e defesa. Lula, porém, pôs o BNDES à disposição dos empresários vizinhos, e o Banco do Brasil anunciou linha de crédito a exportadores.

Na visita à Casa Rosada, Lula pediu desculpas a Fernández pelos constantes ataques que seu antecessor, Jair Bolsonaro, fazia ao presidente argentino:

— Peço desculpas ao povo argentino por todas as grosserias que o último presidente do Brasil, que eu trato de genocida pela falta de cuidado com a pandemia, por todas as ofensas contra o companheiro Fernández — disse Lula, sem citar Bolsonaro nominalmente, ao final de seu pronunciamento durante sua primeira viagem internacional desde que tomou posse.

Segundo Lula, um país com as dimensões do Brasil não pode construir inimigos. O presidente também brincou dando “graças a Deus” que os turistas argentinos voltaram a Santa Catarina. Ele afirmou que espera que os argentinos “descubram” o Nordeste e seu estado, Pernambuco, para ampliar o turismo.

Extrema direita

Em outros momentos da fala, Lula assegurou que vai reconstruir os elos enfraquecidos nos últimos quatro anos.

— Estou aqui para dizer ao presidente da Argentina, aos ministros da Argentina, à imprensa argentina e brasileira, que hoje é a retomada de uma relação que nunca deveria ter sido truncada — afirmou. — Estou de volta para fazer bons acordos com a Argentina. Para compartilhar a construção do que precisa ser construído.

Ao ser questionado sobre o cenário político do país vizinho, Lula tentou evitar declarações polêmicas. Mas, ao fim, disse que tem apenas um desejo para as eleições gerais de 29 de outubro na Argentina:

— Não gosto de dar palpite sobre política de outro país. Não é correto. O que eu posso dizer é que quando o Alberto Fernández ganhou as eleições, eu fiquei muito feliz — afirmou. — Não sei se será candidato à reeleição ou não. Não sei quantos candidatos vão disputar. A única coisa que eu espero é que a Argentina não permita que a extrema direita ganhe as eleições aqui. Porque a extrema direita não deu certo em nenhum país que governou. Portanto, espero que o povo argentino, na sua inteligência, não permita que aconteça um desastre eleitoral aqui na Argentina.

‘Agora que foi, chega!’

O deputado Javier Milei é o principal nome que representa a extrema direita argentina. Milei é simpatizante do bolsonarismo e próximo ao deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Conhecido como “Bolsonaro argentino”, não está claro se ele será candidato à Presidência.

Lula também disse ontem que torceu pela vitória do time argentino na final da Copa do Mundo em 2022.

— Torci para a Argentina na final. Achava que o Messi não poderia terminar a carreira sem ser campeão do mundo. Agora que foi, chega! É a vez do Brasil — brincou o presidente.

Na quarta, o presidente vai a Montevidéu, onde terá uma reunião bilateral com o presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou. Um dos pontos a serem discutidos com o presidente daquele país é a negociação entre Uruguai e China de um acordo de livre comércio sem os demais sócios do Mercosul.