Título: A milonga de Kirchner
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 06/10/2005, Outras Opiniões, p. A11

Quem associa o comportamento do presidente Néstor Kirchner a uma tendência folclórica apenas arranha a realidade. Ao desdenhar a Cúpula das Américas em Brasília, na semana passada, o titular da Casa Rosada mandou um recado aos vizinhos e outro aos compatriotas. Para fora, renovou votos de fidelidade à trajetória individualizada no bloco regional, atropelando impiedosamente, mais uma vez, o cerimonial diplomático. Para dentro, mostrou-se fiel ao manual peronista: muito barulho e fogos de artifício demarcando sua autoridade inequívoca.

É da tradição argentina o gosto por gestos grandiloqüentes e pelo melodrama. Kirchner, naturalmente, é a exacerbação disso. Sua corrente política é o que há de mais indefinido e não cabe na percepção populista e assistencialista na qual freqüentemente é encaixada. Afinal, é um movimento que, sobrevivendo mais de 30 anos após a morte do fundador (Juan Domingo Perón), mantém em campos opostos e irreconciliáveis peronistas como o presidente, seu mentor (Eduardo Duhalde) e o ex-presidente Carlos Menem. Uma nova acusação de crime eleitoral ajustou o terno de caudilho às medidas de Kirchner. Afinal, por que puni-lo por dar, em campanha, benesses aos pobres? Não é por eles e para eles que vivem os líderes peronistas?

Há boas respostas para isso. ''Nós, argentinos, gostamos de autoridade e só respeitamos aquele que demonstra possuí-la'', afirma a analista Anália Del Franco (Márcia Carmo e Mônica Yanakiew, Argentinos, Mitos, Manias e Milongas , Ed. Planeta). É uma informal radiografia política e social da Argentina, na qual o pulso comum explica o tipo de imagem interna que o temperamento intempestivo de Kirchner ajuda a consolidar. ''Aqui a regra é não perder poder. E poder é o que marca a trajetória do peronismo'', declara um seguidor (idem). Ou ainda: ''Ser peronista é seguir a onda internacional. Por isso, Perón estatizou nos anos 50, Menem privatizou nos 90 e Kirchner quer reestatizar no novo século'', afirma o historiador Pablo Vasquez.

É um ponto importante. O Estado forte e atrelado a uma presidência personalista é uma marca kichneriana. Suas ações resgataram as instituições e devolveram o país à normalidade polemista habitual. Os problemas sociais e econômicos seguem graves - mesmo com sinais de recuperação - mas sumiu a sensação de desintegração vigente em governos efêmeros como o de Fernando de La Rua e de Rodriguez Saá.

Essa percepção de nação em pleno domínio de suas capacidades se inspira no passado pré-realismo, este demarcado pelo antagonismo com Brasil e Chile - a busca de equilíbrio regional a manu militari que freou, no início do século passado, um expressivo ciclo de desenvolvimento econômico, com salto das exportações, entre 1880 e 1910, de US$ 56 milhões para US$ 389 milhões. A deterrência drenaria 25% das dotações para Exército e Marinha a partir dessa época.

Tal estratégia não busca a disputa, mas um isolamento estudado, no qual o figurino milongueiro de Perón é o álibi perfeito contra chancelarias melindradas. O desdém com o Mercosul e com a Comunidade Sul-Americana de Nações e seu viés político é, então, compensado pelo flerte com Washington e outros eixos regionais, independente de demandas continentais. Alimenta-se da saudade do apogeu que adorna a base estratigráfica das crises argentinas. E associa à política externa prescrita por George Washington, em 1796, inspiradora de Juan Batista Alberdi, prócer da diplomacia portenha, em 1875: ''paz com todas as nações, aliança com nenhuma'' (José Paradiso, Um lugar no mundo, Ed. Civilização Brasileira). Ou: ''Não aos congressos continentais, um meio impraticável. São as negociações parciais que devem unir os propósitos, alvos e recursos'' (idem).

Ao fugir da pirotecnia de Brasília, Buenos Aires busca o reforço do compromisso não-alinhado a objetivos de união, mas a acertos pontuais. Algo arrematado por Roque Sáenz Pena, em 1917: ''É o interesse que mantém o comércio. Ele termina quando começa o desprendimento e vive desconcertado sob a ação dos afetos''. Mais que peronista, Kirchner é pragmático.