Valor Econômico, v. 20, n. 4895, 06/12/2019. Opinião, p. A18
 

O Supremo na berlinda
 Gustavo Valverde

 

Em regimes democráticos, a Constituição tem uma dupla função. Na política ela é um instrumento para a tomada de decisões segundo critérios de oportunidade e conveniência. No direito é um instrumento para a tomada de decisões segundo critérios de licitude. Esta distinção tem sido menosprezada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com efeitos perigosos para a democracia.

Basta observar o acúmulo de pressão social sobre o tribunal, cujo ápice se atingiu recentemente com o (segundo novo) julgamento sobre a validade da “prisão em segunda instância”. É notável o descrédito da Corte Constitucional. Espera-se que o STF resgate seu papel histórico. Respeitar seus próprios precedentes seria bom começo.

Parece claro tratar-se de um flagelo autoprovocado, ainda que se possa divergir sobre as causas e motivações que levaram o STF à difícil situação em que se colocou. Dentre as possíveis razões, a politização do tribunal parece ter tido contribuição decisiva.

Em democracias maduras, cabe à política debater a Constituição na perspectiva do que é adequado para o bem-estar e progresso futuro da sociedade. Distintamente, ao direito cabe a função precípua - e não menos importante - de interpretar a Constituição para conferir segurança, previsibilidade e estabilidade social. Em outras palavras, cabe ao direito interpretar as “regras do jogo” criadas pela política.

A política se exerce por meio do debate aberto, transparente e amplo. É da sua natureza ser permeável, mudar de opinião, aprender rapidamente e se acomodar às novas tendências, tecnologias e anseios da população. Tudo isso bem desempenhado e a democracia se legitima.

Lógica diferente se aplica ao direito. Os tribunais não podem ter o mesmo nível de exposição, sob pena de comprometerem sua imparcialidade (seja por perdê-la de fato, seja por criarem essa percepção). E, ao contrário da política, a perda da imparcialidade no direito significa a perda de sua legitimidade.

Essa lógica própria do direito explica a função dos seus rituais e simbolismos. A própria demora na conclusão do processo, com todos os seus ritos, funciona como fator de acomodação de expectativas e legitimação da decisão. Essas características servem como medidas de proteção do direito frente aos ruídos da política.

É claro que isolamento e insensibilidade social, lentidão excessiva e exagero de recursos acabam por gerar o efeito inverso. Especialmente quando passam a ser percebidos como sintomas de patrimonialismo e elitismo, agravados pela corrupção, essas características se transformam em “problemas”.

Daí o surgimento de demandas sociais por um Judiciário mais transparente, célere, antenado e comprometido em atuar proativamente na promoção do bem-estar e progresso social. Mas, como se sabe, a diferença do remédio para o veneno está na dosagem. O exagero na dose compromete a legitimidade do direito.

Esta parece ser a situação em que nos encontramos hoje, para a qual o STF foi migrando em um processo gradual e até certo ponto irresistível. Os exemplos são abundantes.

O STF transmite suas sessões “ao vivo” em cadeia nacional. Não foram poucos os episódios em que o efeito midiático contaminou a sobriedade, com grande repercussão. Mas, mesmo em situações normais, a natureza necessariamente técnica das discussões impede que sejam compreendidas por não iniciados, o que reafirma a percepção de isolamento do tribunal.

Nota-se também certa disposição de ministros para participar de debates públicos sem a parcimônia que deveria caracterizar sua função. Alguns têm se comportado como polemistas, atraídos por oportunidades de emitir opiniões sobre os mais variados temas.

Na mesma direção vão as constantes mudanças de posição do STF de acordo com a sua composição. As mudanças de precedentes deveriam ser embasadas em criteriosa e cautelosa avaliação da alteração das circunstâncias vigentes à época em que foram firmados. Alterar precedentes em razão de convicções pessoais de novos integrantes não passa de um ato  político de vontade individual.

Naturalmente, não se pretende que os ministros sejam privados de algum nível de participação no debate público. A sugestão é para que reflitam sobre quais são os limites e as consequências não intencionais desse tipo de envolvimento.

O exemplo do (segundo novo) julgamento da prisão em segunda instância ilustra bem essa situação. Como se sabe, em 2016 o STF decidiu alterar um recente precedente de 2009, em discussão altamente politizada. Como é comum acontecer na política, os ventos rapidamente sopraram na direção contrária e, apenas três anos depois, o tribunal decidiu “voltar atrás".

Muito se pode debater a respeito da correta interpretação do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição, mas não parece possível se argumentar de boa-fé que, nos dez anos em que durou a “saga da segunda instância”, as circunstâncias sociais mudaram profunda e radicalmente por duas vezes e em direções opostas, de modo a justificar duas mudanças de jurisprudência em matéria de direitos fundamentais.

E a saga continua, já que o atual presidente da República deverá indicar dois novos ministros do STF até o final do seu mandato. Julgará o STF pela quarta vez a questão? E se o Congresso Nacional aprovar uma PEC alterando cláusula pétrea para admitir a prisão em segunda instância? Ou, numa trapaça semântica, tentar alterar o próprio significado  da “coisa julgada”? Teria o STF as condições institucionais para aplicar sua pacífica jurisprudência e invalidar essas Emendas?

São questões que os acontecimentos tratarão de responder, mas o simples fato de estarem postas com a gravidade atual revela a armadilha em que o STF se meteu.

A questão central é que o funcionamento deficiente do direito cria problemas para a democracia. Os sintomas aparecem sob a forma de instabilidade, incerteza e insegurança. E o problema se agrava porque esta dinâmica não impacta apenas a política e o direito. Nessas situações, os impactos na economia são potencialmente desastrosos, sob a forma  de “risco político”.

Por isso, espera-se que o STF resgate seu papel histórico e o lugar que a Constituição lhe reservou. Respeitar seus próprios precedentes seria um bom começo.