O Globo, n. 32679, 26/01/2023. Opinião, p. 2

Solução para crise fiscal não é o bolso do contribuinte



Uma das medidas de maior destaque no plano de equilíbrio das contas públicas apresentado neste mês pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, diz respeito ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), última instância administrativa para contribuintes questionarem autuações da Receita Federal. De acordo com o plano anunciado, a redução na litigiosidade do Carf traria R$ 35 bilhões a mais para os cofres públicos, dos R$ 93 milhões em aumento de receitas previstos no pacote.

A principal novidade, adotada por Medida Provisória, foi uma mudança na regra de desempate nas votações do Carf, restaurando uma regra conhecida como “voto de qualidade”, que dá vitória ao Fisco sempre que o placar está empatado. Em entrevista ao GLOBO, o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, estimou em até R$ 60 bilhões anuais o impacto nos cofres públicos, acima da previsão inicial do governo.

Alguns números despertam ceticismo sobre a previsão. O Carf pautou 58 processos para as primeiras sessões do ano, no início de fevereiro. Os julgamentos envolvem tributos da ordem de R$ 11,5 bilhões. Quanto desse total poderia ser decidido pela nova regra de desempate? Pelo histórico dos julgamentos, mais de nove em cada dez decisões do Carf são tomadas por unanimidade ou maioria. Entre janeiro de 2017 e outubro de 2022, o único ano em que esse percentual ficou abaixo de 93% foi em 2017. Em 2020, as decisões por unanimidade ou maioria foram 98% do total.

No ano passado, houve empate em apenas 1,9% das decisões. De acordo com Barreirinhas, esses casos representaram 18% do valor julgado, ou R$ 24,7 bilhões. “Dentre 93 mil processos no Carf, 162 representam R$ 453 bilhões, de R$ 1 trilhão de estoque”, diz ele. “Essa questão do voto de qualidade se impõe nesses casos, em processos com valores altíssimos.”

Mesmo que as mudanças liberassem o proverbial trilhão empoçado no Carf, haveria outra questão. O princípio da justiça tributária não pode ser atropelado pela sanha arrecadatória do Estado. Os quatro conselheiros do órgão, dois indicados pela Receita e dois pelo setor produtivo, estão lá para julgar as autuações, não para encher o caixa do Tesouro.

Outra medida anunciada pelo governo faz menos sentido ainda. A Fazenda poderá recorrer à Justiça nos casos em que contribuintes ganharem disputas. O Carf está vinculado ao Ministério da Fazenda. É descabido um ministério entrar na Justiça para reverter uma decisão tomada por um de seus órgãos.

O estoque de processos no Carf é um problema enorme, pois dobrou no último ano. Tomar decisões mais ágeis é uma necessidade legítima e urgente. Para isso, é preciso descobrir o que tem dado errado. Algumas causas foram circunstanciais. Nos piores momentos da pandemia, o Carf falhou ao fechar as portas por quatro meses. Quando retornou com sessões on-line, restringiu a quantidade dos processos julgados. A barafunda de regras tributárias incompreensíveis, portanto mais sujeitas a interpretações e litígios, também explica a sobrecarga e a morosidade. Resolver essa questão deveria ser a prioridade. O que o governo não pode é mirar no bolso do contribuiente como solução paro todos os seus problemas de caixa.