O Globo, n. 32680, 27/01/2023. Opinião, p. 3
Sempre foi genocídio
Flávia Oliveira
O Brasil adormeceu no último sábado assombrado com uma brutalidade recorrente, ora transmitida em rede nacional. A tragédia dos ianomâmis de Roraima, remanescentes dos mil povos indígenas que habitavam Pindorama até a chegada dos invasores portugueses, nunca cessou. Em 1500, pesquisadores estimam que o território abrigava pelo menos 3 milhões de habitantes nativos; dois terços viviam no litoral. Em século e meio foram reduzidos a não mais de 700 mil. Por homicídio ou aculturação forçada, foram dizimados. Sempre foi genocídio.
— Por meio direto ou por dissolução na ideia de população brasileira, o projeto sempre foi genocida — diz a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, professora na Universidade de Brasília (UnB), recém-indicada diretora-geral do Arquivo Nacional.
Em 1970, quando publicou “Os índios e a civilização”, resultado de mais de uma década de pesquisas, o antropólogo Darcy Ribeiro, grande intelectual e político brasileiro que completaria 100 anos em 2022, já denunciava o desaparecimento de 88 de 230 etnias encontradas na virada do século passado. Somente em 1991, o IBGE incluiu os indígenas no Censo Demográfico. Desde então, a participação dos nativos na população total, impulsionada pela autodeclaração e pelo reconhecimento de direitos fundamentais, saiu de 0,2% para 1,6%. Em 2010, o Brasil tinha 896.917 indígenas, dos quais 572.083 em área rural — os dados do Censo 2022 ainda não estão disponíveis.
Brasileiras e brasileiros podemos — e devemos — nos horrorizar com a barbárie perpetrada contra os povos originários, de modo geral, e contra os ianomâmis, em particular. Só não têm direito à surpresa. O país é cruel desde sempre; e a brutalidade se intensificou nos quatro anos de Jair Bolsonaro no Planalto. O presidente neobandeirante nem quando deputado federal escondeu a vocação para Borba Gato. Apoiador da corrida do ouro contemporânea, sempre defendeu o garimpo e desprezou territórios e povos indígenas. Ainda assim, foi eleito com 57,7 milhões de votos em 2018 e, quatro anos depois, derrotado na campanha à reeleição com votação ainda maior (58,2 milhões).
Relatório de abril de 2022 do Instituto Socioambiental traz relatos desoladores. Em três meses, Funai, Exército e autoridades do governo Bolsonaro receberam uma dúzia de ofícios denunciando a tragédia. Em nota no início da semana, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF) elencou medidas judiciais e extrajudiciais tomadas nos últimos tempos para socorrer os ianomâmis. Em novembro passado, os procuradores relataram ao então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e ao secretário especial de Saúde Indígena, coronel Reginaldo Ramos Machado, irregularidades e deficiências no atendimento, incluindo falta de remédios; sugeriram contratação de profissionais; alertaram sobre a alta incidência de malária, mortalidade e desnutrição infantil. Na Justiça, foram três ações solicitando instalação de bases de proteção etnoambiental; plano emergencial de enfrentamento à Covid-19; combate a ilícitos ambientais e expulsão de garimpeiros.
Antes disso, em agosto de 2021, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) já tinha encaminhado ao Tribunal Penal Internacional denúncia de genocídio e crime contra a humanidade por extermínio, perseguição, desmonte das instituições de proteção e atos desumanos. A entidade voltou à Corte de Haia em meados do ano passado para acusar o então presidente e o governo de morosidade nas investigações sobre os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips na Terra Indígena do Vale do Javari, no Amazonas. Nesta semana, a Polícia Federal apontou o traficante Rubens Villar, o Colômbia, como mandante do crime. A Univale, que representa os indígenas da região, cobra a continuidade das investigações para debelar o crime organizado e identificar a conivência de políticos locais.
No Sul da Bahia, dois jovens pataxós foram mortos a tiros por disputa fundiária, dias depois da posse de Sonia Guajajara no inédito Ministério dos Povos Indígenas. O Brasil é um dos países que mais matam defensores de direitos humanos no planeta, indígenas e quilombolas entre eles. Anteontem, a deputada federal eleita Célia Xakriabá marchou em Brumadinho (MG) com indígenas afetados pelo rompimento de uma barragem de resíduos da Vale, que deixou 270 mortos em janeiro de 2019. A mineradora, uma prestadora de serviços, a Tüv Süd, e 16 executivos tornaram-se réus somente nesta semana.
O rol de violações contra povos indígenas no Brasil começou em 1500 e não terminou. O Estado deve reconhecimento e reparação aos donos da terra; a sociedade, um pedido sincero de desculpas; o Judiciário, a condenação dos genocidas do século XXI, do Planalto à planície, do topo à base, de cabo a rabo.