Valor Econômico, v. 20, n. 4895, 06/12/2019. Legislação e Tributos, p. E2
 

Suprema Corte e o civismo ativo
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr.

 

Os crescentes protestos populares contra a Suprema Corte revelam o surgir de uma nova dinâmica estrutural na democracia contemporânea. O fenômeno chama atenção, merecendo ser analisado com as cautelas e minúcias de estilo.

Em um primeiro momento, exsurge a impressão de que a liturgia reclusa e de reserva do Alto Tribunal está sendo alterada para um padrão de ostensivo protagonismo institucional. Todavia, se já foi dito que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, restam determinar quais os hábitos e costumes públicos necessários ao pleno atendimento dos voláteis  anseios da sociedade atual com a respectiva preservação da nobre e inegociável dignidade da Corte Constitucional.

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Ora, a hipertrofia corrente do Supremo é uma consequência direta da atrofia dos demais poderes republicanos. Diante da grave decadência institucional do Executivo e do Legislativo, inúmeras questões políticas relevantes foram sendo transferidas para o campo da deliberação jurisdicional. Inicialmente, tal transposição de competências foi recebida sem freios pelo Alto Tribunal, pois aumentava o prestígio e o respectivo poder de suas decisões. O problema é que o trem correu demais, expondo e desgastando os trilhos jurídicos da Corte.

Sem cortinas, o Supremo passou a ser silenciosamente usado pelos demais poderes da República. Incapazes de resolver as dificuldades de governar e de fazer as leis necessárias ao bom governo, o Executivo e o Legislativo fizeram da inércia um instrumento de provocação judicial. Dessa forma, inúmeras demandas, que, em tese, exigiriam prévia e soberana deliberação política, passaram a depender apenas de uma maioria simples de seis votos togados. Durante um tempo, o atalho pragmático serviu. Acontece que os efeitos deletérios da suprema hipertrofiam começam a pesar sobre os joelhos da nação.

Além de um importante déficit democrático, as insistentes deliberações do Supremo sobre matéria política começaram a atrair gradual insatisfação de grupos cívicos descontentes. Sim, a situação é delicada, pois a atuação jurisdicional da Corte está tangenciando seus limites. Nas sinuosas fronteiras institucionais do poder, a forma jurídica não tem o condão de desnaturar o fato em si. Ou seja, sentenças judiciais podem amenizar, mas não resolvem problemas políticos. Por maior que o seja o talento hermenêutico do julgador, a crueza da política exige limites semânticos que vão além da norma posta, extravasando as margens de construção judicial do possível. E, quando o impossível aparece, as justificativas não bastam.

Logo, está chegada a hora do Supremo sopesar suas extraordinárias técnicas de jurisdição constitucional. Por maior que tenha sido a grandeza de intenções no passado, a suprema hipertrofia começa a cobrar um preço muito alto. A hora exige comedimento e coragem para expor com clareza os deveres e responsabilidades de cada poder no seio da República. Não cabe à Corte assumir encargos que não são seus.

Os desafios do futuro não comportam confusão de interesses. Vivemos um tempo de transparência radical sobre as questões do Estado, inexistindo espaço para os velhos métodos de complacência velada com os malfeitos do poder.

Objetivamente, o Supremo pode muito, mas não pode mudar por si só a política. Isso porque a jurisdição constitucional é uma via de apoio e, não, o caminho de mudanças estruturais da democracia.

Cabe, assim, à política o protagonismo das transformações democráticas, sendo o Supremo o resguardo soberano da lei. É claro que a interpretação jurídica é uma poderosa arma de impulso a avanços sociais civilizatórios. Mas, como bem aponta o nobre magistério de Gustavo Zagrebelsky, “a justiça constitucional é uma função republicana” e, não, um instrumento ordinário da política.

Aqui chegando, o presente artigo fez a memória revisitar belas páginas do passado. Em inesquecível conversa com o ministro Brossard, certa vez o indaguei: o Supremo é político ou jurídico? Doutor Paulo, então, com a classe habitual, se ajeitou na cadeira e respondeu: “O Supremo é um Tribunal jurídico que julga questões políticas”. A genialidade dispensa legendas, fazendo realçar que julgar é diferente de fazer política. Em tempo, tal distinção é absolutamente fundamental em uma quadra democrática de intenso e decidido Civismo Constitucional ativo. Até mesmo porque as táticas de dominação do ontem podem pouco frente a uma cidadania política que aprendeu a ter voz.