Título: Conceitos distorcidos
Autor: Milton Temer*
Fonte: Jornal do Brasil, 04/10/2005, Outras Opiniões, p. A11

Não é correto afirmar que o artifício usado pelo Planalto para garantir o controle da cadeira de presidente da Câmara dos Deputados, através da liberação de emendas ao Orçamento, tenha sido legítimo. Segundo alguns analistas, fazendo coro com parlamentares beneficiados, o Executivo não estaria cumprindo mais do que sua obrigação ao atender as demandas de liberação de verbas. Pura falácia. As emendas individuais são consideradas condenáveis desde as conclusões da saudosa - porque chegou a termo - CPI dos Anões. Sua extinção, nunca concretizada, foi uma das recomendações mais importantes daquela bem-sucedida investigação depois de constatar algo fundamental. Elas são verdadeiros bueiros, tão ou mais eficientes do que o financiamento privado de campanhas eleitorais, para o escoamento impune da corrupção na vida pública.

É nessas emendas que os parlamentares desonestos operam duas formas de crimes contra o patrimônio público. Cobram porcentagem sobre o total da verba a ser liberada que introduzem no Orçamento e cobram outro tanto na liberação desses recursos pelo Executivo.

Evidentemente não é justo generalizar. Nem todas essas emendas são condenáveis ou desnecessárias. Mas a maioria, certamente, o é. Há deputados que dedicam seu mandato à obtenção de verbas com as quais constroem casas de saúde ou escolas privadas, colocadas em nomes de parentes ou de agentes laranjas. Deputados medíocres, sem participação nos debates a não ser para operar interesses escusos. Que, nem por um instante, sentem-se diminuídos com o caráter dessa verdadeira gorjeta - apenas uma compensação aos impedimentos constitucionais que lhes são impostos na contestação das prioridades do governo. Como, por exemplo, a parcela da receita dedicada aos juros da dívida externa. Mas não ficou aí o trabalho de distorção de conceitos políticos.

Estendeu-se também a outra questão não menos essencial: a famigerada cláusula de barreira, cuja supressão se constituiria em ''retrocesso'' para esses mesmos analistas, ao se referirem à pauta do remendo eleitoral que era anunciado como reforma política.

Pela lei em vigor, o partido que não alcançar 5% dos votos nacionais para a Câmara, com 2% em nove estados, não tem acesso a fundo partidário, nem horário gratuito na televisão, para além de perder prerrogativas de lideranças e participação em comissões permanentes. Com isto, estaria fechado, para eles, o caminho às ''legendas de aluguel'', ao que tudo indica, definidas pelo critério do reduzido número de parlamentares.

Mas afinal de contas, tudo o que vem sendo revelado não envolve exclusivamente nomes de legendas menores. Pelo contrário, PT, PL, PTB, PP - com indícios sérios sobre algumas espalhafatosas plumas tucanas - são os destaques no desfile de denunciados. Outra falácia, portanto.

Cláusula de barreira eleitoral não é instrumento de aperfeiçoamento democrático, mas sim de discriminação deliberada das minorias. Foi gerada na Alemanha ocupada do pós-guerra, como forma de impedir que os comunistas, com expressão social superior à representação quantitativa, pudessem ascender ao parlamento.

No contexto atual brasileiro, ela é introduzida com objetivo semelhante. Tem por alvo manter o processo parlamentar e a disputa do poder institucional limitados a duas grandes vertentes moderadas, que não confrontariam modelos. Apenas se empenhariam na conquista da máquina do Estado. Uma, mais conservadora. A outra, disfarçada em centrista, através de pequenas concessões sociais destinadas a estiolar a combatividade do movimento social. Reproduzindo o a falsa dicotomia entre democratas e republicanos, na americanhalhada democracia norte-americana. Sem nenhuma perspectiva de transformação qualitativa do modelo em vigor, determinante do agravamento crescente da desigualdade social.

Reivindicar a redução dos índices da cláusula de barreira é pouco . Correto é eliminá-la. Se a Câmara é espaço de representação proporcional direta do povo; e se todos são iguais em direitos, segundo a Constituição, cabe ao eleitor, e somente a ele, determinar em que proporção as cadeiras são distribuídas. E em que porcentagens serão outorgadas as prerrogativas e direitos pecuniários das diversas representações partidárias na Casa.

Fora disso, é agressão aos direitos das minorias.