Valor Econômico, n. 4916, 10/01/2020. Política, p. A7

STF pode esvaziar delações caso amplie critérios para rescisão de acordos
André Guilherme Vieira
Luísa Martins
Isadora Peron
Murillo Camarotto


Principal ferramenta de combate à corrupção amplamente adotada desde o surgimento da Operação Lava-Jato, em março de 2014, a delação premiada foi colocada em xeque pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e poderá ser esvaziada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), caso a Corte não assegure ao colaborador que a acusação cumprirá as sanções previamente pactuadas no contrato do acordo de colaboração.

O Supremo julgará, em 17 de junho, a validade da delação do empresário Joesley Batista, sócio do grupo J&F, holding que controla o frigorífico JBS. Joesley foi acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de omitir informações em seu acordo. A Procuradoria-Geral da República (PGR) quer rescindir também os acordos do irmão dele, Wesley Batista, do diretor jurídico Francisco de Assis e do executivo Ricardo Saud. Mesmo que haja cancelamento dos benefícios concedidos aos delatores, as informações por eles reveladas deverão continuar juridicamente válidas. Já os colaboradores correm o risco de voltar à prisão.

A PGR requereu a rescisão dos acordos há dois anos e meio, ainda durante a gestão do procurador-geral Rodrigo Janot. O entendimento foi que os delatores da J&F omitiram fatos sob orientação do então procurador da República Marcelo Miller, que assessorava Janot na PGR. Miller negociou sua transição do MPF para o escritório Trench, Rossi e Watanabe enquanto ocupava o cargo de procurador da República. A banca de advogados mantinha sociedade com a firma americana Baker & McKenzie - que havia sido contratada pela J&F.

Em setembro do ano passado a acusação contra Miller foi considerada inepta (vazia) e trancada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). A Corte decidiu que a conduta do ex-procurador não configurou crime. No entanto, a PGR manteve no STF a requisição para cancelar os acordos dos empresários e executivos da J&F.

Na opinião de advogados de réus delatores ouvidos pela reportagem, se as delações da J&F forem canceladas, os critérios para rescisão de acordos de colaboração poderão se tornar excessivamente ampliados.

Com o aumento da insegurança jurídica, não haverá estímulo para que novos delatores revelem crimes. Sem parâmetros claros e com risco de rescisão, a opção do acusado será a conduta tradicional de enfrentar a acusação.

Quatro delatores ouvidos reservadamente pelo Valor afirmaram que se arrependeram de terem firmado acordo de delação premiada com o MPF na Lava-Jato. Na opinião de um deles, ex-executivo de uma grande empreiteira, as regras da delação na Lava-Jato foram “mudando ao longo do jogo”. Ele afirma que, se fosse acusado hoje, optaria pelo caminho comum de defesa, sem se autoincriminar. Essa fonte também acredita que não passaria muito mais tempo na cadeia se tivesse sido condenado pelos crimes que lhe foram imputados. E compara a rotina do delator a de “alguém que fez um pacto com o diabo”. A todo momento em que é instado a esclarecer fatos, o delator é obrigado a se deslocar até o MPF para depor.

No início da Lava-Jato de Curitiba, MPF e Polícia Federal (PF) atuavam conjuntamente nas negociaçõs de delações e conseguiram chegar às entranhas de crimes na Petrobras, em outras estatais, como a Eletrobras, e ainda em ministérios e outros órgãos públicos.

Mesmo com o fim da sintonia entre procuradores e policiais, as delações premiadas continuaram a ser fechadas - sem a participação dos delegados. Com a autorização dada à PF para firmar seus próprios acordos, concedida pelo plenário do STF em junho de 2018, os protocolos para costura de delação passaram a variar conforme a vontade do órgão em que o acordo era negociado.

No próprio MPF não há parâmetros para orientar a formatação de acordos de delação. Cada procuradoria segue protocolo próprio.

Se a incerteza sobre como o STF modulará as delações é motivo de preocupação, advogados de réus delatores comemoraram os dispositivos do pacote anticrime.

Essa lei estabelece que só serão rescindidas as delações em que houver omissão intencional (dolosa) de informações.

Além disso, a nova legislação permite que o juiz, ao homologar o acordo, avalie o mérito do material. Hoje, o magistrado apenas verifica se a delação é válida sob os aspectos da legalidade e da voluntariedade do delator.

Toffoli derruba decisão que censurava vídeo na Netflix

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, atendeu ontem a pedido da Netflix e determinou que o especial de Natal “A Primeira Tentação de Cristo”, especial de Natal do grupo de humor Porta dos Fundos, volte ao catálogo da plataforma.

 

O filme havia sido removido por decisão judicial do desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que considerou a medida necessária “para acalmar os ânimos” da sociedade brasileira, “majoritariamente cristã”.

A Associação Dom Bosco de Fé e Cultura acionou a Justiça por considerar a peça ofensiva, já que retrata Jesus Cristo como homossexual. Porém, Toffoli afirmou que a remoção do conteúdo viola Constituição, que veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística.

“Não se descuida da relevância do respeito à fé cristã (assim como de todas as demais crenças religiosas ou a ausência dela). Não é de se supor, contudo, que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã”, escreveu o ministro.

Toffoli disse, ainda, que há diversos precedentes da Corte que ressaltam “a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais”.

Em 2017, o próprio desembargador utilizou esse dispositivo constitucional para livrar o presidente Jair Bolsonaro, que havia sido condenado a pagar indenizações por ofensas à comunidade LGBT. Na ocasião, Abicair disse que, em uma democracia, não caberia “censurar o direito de manifestação de quem quer que seja”. No caso da Netflix, contudo, ele afirmou ter havido um abuso desse direito.

No Supremo, a plataforma alegou “manifesta censura” e questionou a imposição de “controle sobre conteúdos artísticos” pela Justiça. A Netflix explicou, ainda, que a obra “vale-se do humor e de elementos ficcionais para apresentar uma visão sobre aspectos da sexualidade humana”.

Ontem, em vídeo divulgado antes da decisão do STF, o empresário Eduardo Fauzi - um dos supostos autores do atentado à sede do Porta dos Fundos, no Rio, com coquetel molotov - celebrou a censura imposta pelo TJ. Fauzi está foragido da Justiça brasileira e já integra a lista vermelha da Interpol.

PGR diz que prazo para juiz das garantias é inexequível

O procurador-geral da República, Augusto Aras, defende que a implementação do juiz de garantias só aconteça quando 100% dos processos em tramitação forem eletrônicos. Ele também advoga que o novo modelo seja iniciado simultaneamente em todo o país e concorda que isso não poderá acontecer no prazo de 30 dias estipulado inicialmente.

Aras encaminhou ontem ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) um memorando com sugestões para a implementação do juiz das garantias. O documento foi elaborado a partir de uma análise comparativa dos Códigos de Processo Penal (CPPs) de Brasil, Argentina e Chile.

Elaborado pelas Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF que atuam nas áreas criminal (2CCR), de combate à corrupção (5CCR) e de meio ambiente (4CCR), o documento alerta que, no caso da Justiça Federal, a implementação dos processos eletrônicos na área criminal está prevista apenas para o fim do primeiro semestre de 2020.

Tal cenário, ainda de acordo com o MPF, inviabiliza a efetivação do juiz das garantias em todos os tribunais do país no período de 30 dias estipulado pela Lei 13.964/2019, também conhecida como “Lei Anticrime”.

Desse modo, a recomendação é de que o CNJ oriente os tribunais a estabelecerem cronogramas próprios voltados à gradual adoção do juiz das garantias durante o ano de 2020. O MPF também avalia que a implementação do instituto demandaria o uso de videoconferência em todas as audiências, inclusive, as de custódia.

Outra medida sugerida foi a não adoção do juiz das garantias em julgamentos da Lei 8038/90, relativa a processos que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), bem como a processos com ritos próprios como aqueles dos juizados criminais, Lei Maria da Penha e Tribunal do Júri.

“Caso se entenda que o instituto deva ser aplicado aos juízes especializados, deve haver juízes de garantia especializados (varas de lavagem e sistema financeiro, varas de violência doméstica, tribunais do júri)”, informa o memorando.

Há ainda um pedido de esclarecimento sobre a aplicabilidade do juiz das garantias na Justiça Eleitoral. Além disso, o MPF sugere que o juiz das garantias seja aplicado somente para inquéritos policiais e processos novos, “evitando-se, assim, discussões sobre o juiz natural e a perpetuação da jurisdição para feitos em andamento”.

Na sua argumentação, o Ministério Público sugere o comparativo com os modelos implantados na Argentina e no Chile, que deveriam ser usados como inspiração para o sistema brasileiro.

“Conforme as premissas básicas do sistema acusatório e as regras básicas de funcionamento de um sistema verdadeiramente acusatório/adversarial, tem-se que as legislações processuais penais da Argentina e Chile apresentam a modelagem adequada a ser adotada, razão pela qual sugerimos estudo comparativo que muito pode contribuir para o aperfeiçoamento do texto final do novo Código de Processo Penal Brasileiro”, sintetiza o documento enviado por Aras ao CNJ.

PF prende ex-senador ligado a Helder Barbalho

A Polícia Federal (PF) deflagrou ontem a Operação Fora do Caixa, desdobramento da Lava-Jato, e prendeu o ex-senador Luiz Otávio Campos, ligado ao senador Jader Barbalho e ao governador do Pará, Helder Barbalho. Todos são filiados ao MDB.

No fim do dia, o ex-senador foi libertado por um habeas corpus para responder as acusações em liberdade. O alvará de soltura foi emitido pela juíza substituta da 1ª Zona Eleitoral de Belém, Andrea Cristine Correa Ribeiro. Segundo fontes que acompanham a investigação, o Ministério Público Eleitoral entendeu que os mandados de busca e apreensão surtiram efeito e que a prisão não era mais necessária, uma vez Luiz Otávio não apresentava risco ao avanço da apuração.

Segundo o Valor apurou, a PF chegou a pedir a realização de busca e apreensão em endereços ligados a Helder, mas o pedido foi negado pela Justiça Eleitoral. Em nota, a assessoria do governador do Pará afirmou que ele não era “alvo da ação”.

A operação também prendeu o empresário Álvaro Cesar Silva da Rin, em Palmas. Além dos dois mandados de prisão, também foram cumpridos seis mandados nas cidades de Belém, Palmas e Brasília.

A investigação teve início a partir da colaboração premiada feita por executivos da Odebrecht, que relataram o pagamento de R$ 1,5 milhão, por meio de caixa dois, para Helder, em 2014, quando concorreu ao governo do Pará, mas foi derrotado. O dinheiro teria sido desviado da obra da hidrelétrica de Belo Monte.

Segundo o depoimento dos executivos, foram realizadas três entregas, nos valores de R$ 500 mil cada, nos meses de setembro e outubro de 2014, sendo que o recebimento foi intermediado por Luiz Otávio. Durante o trabalho investigativo, foram encontrados indícios de que pelo menos um dos pagamentos foi realizado em endereço ligado a parentes do ex-senador do MDB. Durante o governo Temer, Helder se tornou ministro da Integração Nacional. Luiz Otávio, por sua vez, foi nomeado secretário-executivo da pasta.

Os crimes sob investigação são de falsidade ideológica eleitoral (caixa dois), formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.

A investigação teve início no Supremo Tribunal Federal (STF), mas houve declínio de competência para Justiça Eleitoral em Belém, a partir da confirmação do entendimento sobre a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar crimes comuns em conexão com crimes eleitorais. Os mandados foram expedidos pela 1ª Vara da Justiça Eleitoral em Belém.

Helder se manifestou sobre a operação pelas redes sociais. “Minha campanha ao governo do Pará, em 2014, foi feita dentro da legislação vigente à época”, disse. “As doações oriundas da empresa Odebrecht foram integralmente declaradas ao TRE e minhas contas aprovadas pela Justiça Eleitoral. Reitero o compromisso com a lisura de todo processo eleitoral e com o trabalho da Justiça”, afirmou no Twitter. Em outra investigação, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou anteontem o vice-governador do Pará, Lúcio Vale, por suposto desvio de R$ 39,6 milhões por meio de fraudes em licitações.