Título: O brinquedo do plebiscito
Autor: Deonísio da Silva
Fonte: Jornal do Brasil, 04/10/2005, Outras Opiniões, p. A11

Qualquer antologia traz o texto famoso de Artur Azevedo, intitulado Plebiscito. Tem quatro personagens: Seu Rodrigues (o marido), Dona Bernardina (a esposa), Manduca (o filho) e uma menina sem nome (a filha). Ele é negociante. ''Repimpado numa cadeira de balanço'', depois de comer ''como uma abade'', ''palita dos dentes'' e lê ''uma das nossas folhas diárias''.

O filho pergunta: ''Pai, o que é plebiscito?''. O pai ignora a resposta, tenta enrolar o filho, a filha e a esposa, mas esta não perdoa: ''Aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito''. Diante das irritadas perorações do marido, acrescenta: ''Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!''.

O forte de Artur Azevedo, assim como de Manuel Antônio de Almeida, é o registro de usos e costumes. Do pequeno trecho ficamos sabendo que pelo menos os comerciantes liam jornal ''depois do jantar'', desconheciam o vocabulário da imprensa, mas tinham um dicionário em casa, onde procuravam o significado das palavras que iam entrando na linguagem corrente.

O desfecho é perfeito. Com a desculpa de que foi ofendido pela mulher, o marido retira-se para o quarto e lá está o que precisa: um dicionário. Qual seria? O Diccionario da Língua Portugueza, de Antonio de Moraes Silva? O Vocabulário Português e Latino, do padre Rafael Bluteau, que nos impôs vaga-lume, porque somente a língua portuguesa, dentre as neolatinas, acolhera caga-lume, como o povo tinha o costume de denominar o inseto, ''nome tão imundo''?

Ao voltar à sala, depois das súplicas da esposa, movida pela piedade da filha (''Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!), o senhor da Casa explica, didático e glorioso:

''Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

- Ah! - suspiram todos, aliviados. - Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!''.

Foi o padre Rafael Bluteau em seu Dicionário Portuguez e Latino, publicado entre 1712 e 1728, em Lisboa e Coimbra, em oito volumes, quem trouxe originalmente ''plesbiscito'' para o universo vocabular dos brasileiros. O dicionário Moraes diz que se trata de ''lei romana aprovada pelos populares, e que não obrigava os nobres; mas depois veio a ser universal para todas as ordens; modernamente, votação popular tendo por fim conhecer se o chefe d'um estado tem ou não o apoio e a sympathia da maioria n'esse estado''. Moraes já registra a preocupação dos modernos governantes do século XIX de averiguar sua popularidade. É a tal aferição da ''simpathia''. Afinal, algumas décadas antes tinham decapitado o rei na Revolução Francesa (1789)...

José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, cuja primeira edição é de 1952, limita-se a dizer que veio do latim plebiscitu, sem sequer dizer que é declinação de plebiscitum, neutro (gênero que oficialmente não existe no português), junção de plebis scitum, decreto da plebe, depois populi scitum decretum, abonados, entre outros, por Cícero.

Vou votar ''não'' à proibição. O Brasil precisa fazer plebiscitos sobre outras questões, como a dos juros e a dos automóveis, por exemplo, que matam muito mais. Em resumo, os argumentos favoráveis à proibição não resistem à lógica. E a questão central é: por que o Estado se omite tanto em nossa defesa e, quando nos defendemos por conta própria, lá vem o Estado com o que mais sabe fazer: atrapalhar os cidadãos. Proibições como essa têm o fim de criar dificuldades para vender facilidades.

Deonísio da Silva escreve às terças-feiras no JB