Valor Econômico, v. 20, n. 4899, 12/12/2019. Brasil,  p. A4
 

Loteando o Orçamento da União
Ribamar Oliveira

 

O que já era ruim está ficando pior. Na noite de terça-feira, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei que muda a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) válida para 2020, tornando obrigatória a execução de mais dois tipos de emendas parlamentares ao Orçamento: de comissão permanente do Senado e da Câmara e do relator-geral da proposta orçamentária. Agora, são quatro tipos de emendas com execução obrigatória, pois a essas duas se acrescentam as de bancada estadual e as individuais. No total, elas deverão superar R$ 20 bilhões no próximo ano.

O discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, é pela desvinculação dos recursos orçamentários, pois 94% do Orçamento atualmente tem destinação previamente definida. Trabalhando em direção contrária, os parlamentares não apenas aumentaram o engessamento orçamentário no próximo ano, como estão ampliando um tipo surrealista de vinculação: às pessos. Ou, mais precisamente, às pessoas físicas de deputados e senadores. Emendas parlamentares já superam R$ 20 bi.

No passado, os parlamentares sempre fizeram emendas ao Orçamento. A diferença é que elas não eram impositivas, ou seja, a execução não era obrigatória. Os governos, de todas as colorações políticas, condicionavam a liberação dos recursos das emendas à votação dos projetos de lei que lhe interessavam. Um dos componentes do jogo político brasileiro  sempre foi justamente a liberação das emendas parlamentares.

Até há pouco tempo, o valor das emendas era pequeno e objetivava atender reivindicações das cidades que elegiam os parlamentares. Como ainda não existia um teto para os gastos da União, instituído apenas em 2016 pela emenda constitucional 95, os deputados e senadores elevavam a previsão das receitas orçamentárias do ano para abrir  espaço para suas emendas. Depois, no início de cada ano, o Executivo fazia o contingenciamento das dotações orçamentárias e as emendas eram as principais vítimas da tesoura. A liberação dos recursos das emendas dependia inteiramente da vontade do governo.

O embate com o Executivo em torno da liberação das emendas levou os parlamentares a aprovar, durante o segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, a Emenda Constitucional 86/2015, que tornou obrigatória a execução orçamentária e financeira das emendas individuais até o montante correspondente a 1,2% da receita corrente líquida da União. Do total, 50% teriam que ser destinados à área de saúde.

Desde então, cada parlamentar tem o direito de destinar um determinado valor (para 2020 serão R$ 15 milhões) para os municípios que quiser e para a destinação que desejar. O valor total das emendas individuais em 2020 soma R$ 9,5 bilhões. O deputado ou senador pode destinar R$ 1 milhão para a melhoria da infraestrutura urbana dos municípios de  Minas Gerais, por exemplo.

Depois que o Orçamento é aprovado, ele ou o seu assessor entra no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) e coloca o CNPJ de cada município onde os recursos serão aplicados. A dotação orçamentária, portanto, é vinculada não a uma função, como saúde ou educação, mas a uma pessoa, no caso o parlamentar que fez a emenda.

Neste ano, com a emenda constitucional 100, o Congresso tornou obrigatória a execução das emendas de bancada parlamentar estadual, até o limite de 1% da receita corrente líquida da União no exercício anterior. Para o ano que vem, o valor será de R$ 5,9 bilhões. Se o governo necessitar fazer contingenciamento das dotações orçamentárias para cumprir  a meta fiscal ou o teto de gastos, terá que fazer o corte das emendas parlamentares de forma proporcional com as demais dotações. Ou seja, não pode usar a tesoura com mais força nas emendas individuais e de bancada.

A Emenda Constitucional 100/2019 foi além. Ela tornou todo o Orçamento da União impositivo, ao dizer que “a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”. A emenda 102/2019 estabeleceu que o dever de  executar se aplica “exclusivamente às despesas primárias discricionárias”, que são os investimentos e o custeio da máquina.

Se todas as despesas primárias discricionárias da União passaram a ser impositivas, qualquer emenda parlamentar ao Orçamento, que trata de investimentos e custeio, é igualmente impositiva. Foi essa brecha que os parlamentares utilizaram para incluir na LDO válida para 2020 a obrigatoriedade de execução das emendas de comissão e do relator-geral do Orçamento. 

O presidente Jair Bolsonaro vetou os artigos da LDO que tratavam desta questão. Os parlamentares tentaram derrubar o veto. Os deputados votaram pela derrubada do veto, mas houve confusão por parte dos senadores. Insatisfeitos, os deputados ameaçaram não votar mais qualquer matéria de interesse do governo.

Por isso, o presidente Bolsonaro encaminhou projeto de lei recolocando na LDO os artigos que havia vetado. Mas estipulou limites para a execução das emendas de comissão e do relator-geral. Os limites foram derrubados na terça-feira e o texto aprovado diz que o contingenciamento dessas emendas terá que ser proporcional aos demais cortes.

Com suas emendas, os parlamentares passaram a ter o direito de orçar uma parte considerável do dinheiro público. Em 2020, são mais de R$ 20 bilhões. Serão recursos vinculados a determinadas pessoas, que aparecerão como benfeitores. As emendas parlamentares destinam recursos públicos sem critério, à revelia do Executivo, não fazem parte de programas nacionais ou de um planejamento que leve em consideração as necessidades das áreas mais carentes da federação.

Ontem, o Senado aprovou uma aberração. Permitiu que até 50% das emendas parlamentares individuais possam ser doadas a prefeituras ou governos estaduais sem destinação específica. A emenda constituição com a permissão já tinha sido aprovada pela Câmara.