Valor Econômico, v. 20, n. 4899, 12/12/2019. Brasil, p. A12
 

Espanha vê ‘falácia’ em discurso ambiental contra acordo UE-Mercosul
Entrevista: Xiana Méndez Bértolo, Secretaria de Comércio da Espanha 

 

Usar a alta recente do desmatamento na Amazônia como argumento contra a ratificação do acordo de livre comércio União Europeia-Mercosul é uma “falácia”. A avaliação não parte de um integrante do governo Jair Bolsonaro, mas da principal autoridade espanhola para assuntos comerciais. “Quem estiver realmente preocupado com o meio ambiente deveria torcer pela entrada em vigência do tratado”, disse, ao Valor, a secretária de Estado de Comércio da Espanha, Xiana Méndez Bértolo, como representante do país europeu que mais fortemente lutou por um desfecho positivo das negociações.

Segundo ela, que integra o gabinete do primeiro-ministro Pedro Sánchez (centro-esquerda), nenhum acordo anterior firmado pela UE tem tantas cláusulas sobre desenvolvimento sustentável. O tratado com o Mercosul, em sua opinião, reforça os compromissos de cada signatário com o Acordo de Paris e com medidas de combate ao desmatamento. Em caso de  descumprimento das cláusulas, pode haver prejuízo comercial com a suspensão das preferências tarifárias e não tarifárias constantes do tratado.

Xiana, que também acumula o cargo de presidente do Instituto Espanhol de Comércio Exterior (Icex), acredita na ratificação do acordo entre o fim de 2021 e o início de 2022. Em visita oficial ao Brasil, ela se reuniu com o governador João Doria em São Paulo e esteve nesta quarta-feira (11) com o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, no Palácio do Planalto. Na quinta (12), participa do Encontro Empresarial Brasil-Espanha, no Rio de Janeiro, junto com autoridades da equipe econômica e do Ministério do Desenvolvimento Regional.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista, concedida na embaixada da Espanha, em Brasília:

Valor: Como será a ratificação do acordo UE-Mercosul? Afinal, ele terá que passar pelos parlamentos de cada país ou somente pelo Parlamento Europeu?

Xiana Méndez: Trata-se de um acordo de última geração e bastante abrangente. Como não é puramente comercial, terá que ser ratificado não só pelo Parlamento Europeu, mas também pelos parlamentos nacionais. A Comissão Europeia deu as negociações por encerradas e agora estamos em processo de revisão legal. Em seguida, vem a tradução para todos os idiomas [da UE]. O acordo pode entrar em vigência provisória depois de aprovação pelo Conselho Europeu e pelo Parlamento Europeu, mas depois precisará da ratificação dos parlamentos nacionais para tornar-se definitivo.

Valor: Inclusive a parte meramente comercial — e não política ou de cooperação — do acordo?

Xiana: Sim, porque ela não é unicamente comercial. Há um capítulo, por exemplo, sobre comércio e desenvolvimento sustentável.

Valor: É sempre perigoso falar em cronograma, mas para quando poderíamos esperar a entrada em vigência?

Xiana: Em caráter provisório, mas já surtindo efeitos na parte comercial, levaria de um ano e meio a dois anos. Eu diria que o lógico seria no início de 2022 ou fim de 2021.

Valor: Os mais resistentes ao acordo são os suspeitos de sempre: França, Irlanda, Polônia. Mas surpreendeu a moção aprovada pelo Parlamento da Áustria. Parece ser um indicativo de que a resistência ao acordo com o Mercosul é mais ampla.

Xiana: No caso da Áustria, não é uma negativa ao acordo UE-Mercosul especificamente, mas uma reconsideração da política comercial europeia. Também fizeram a mesma coisa com outros tratados em discussão. Há correntes mais céticas sobre o próprio projeto europeu. Acredito que contar com um ano e meio pela frente para a ratificação do acordo, no caso do Mercosul, é positivo porque nos dá a oportunidade de esfriar os ânimos e ter um debate mais sereno. Precisamos construir uma comunicação baseada em fatos e não sobre emoções.

Valor: A sra. se refere às questões ambientais e ao temor europeu com o que está acontecendo na Amazônia?

Xiana: Esse debate sobre meio ambiente é uma falácia. O capítulo sobre desenvolvimento sustentável no acordo com o Mercosul é bastante ambicioso — mais do que qualquer tratado firmado pela UE até hoje. Incluímos esse tipo de cláusula, pela primeira vez, no acordo que assinamos com a Coreia do Sul em 2011. Desde então, temos melhorado a cada acordo, mas esta é a melhor versão já negociada. Inclui o cumprimento efetivo do Acordo de Paris e de compromissos climáticos perante as Nações Unidas, cláusulas sobre combate ao desmatamento, promoção do reflorestamento, cláusulas sobre a participação de comunidades indígenas.

Valor: E se essas cláusulas não forem cumpridas?

Xiana: O instrumento previsto é interessante. Em caso de descumprimento manifesto das cláusulas relativas ao Acordo de Paris ou à luta contra o desmatamento, abre-se um procedimento com participação da sociedade civil e de especialistas independentes. E elabora-se um informe. Esse mero relatório já representa um incentivo para que cumpram novamente as cláusulas. Se o descumprimento for reiterado, significa um descumprimento do acordo comercial em si. Não existe uma tabela com sanções. É um tema novo. Mas, logicamente, o descumprimento do próprio acordo comercial pode levar à sua suspensão [com perda das preferências tarifárias].

Valor: Por que a sra. considera o debate sobre meio ambiente, no âmbito do acordo UE-Mercosul, uma falácia?

Xiana: A negociação foi concluída em junho. Sinceramente, não acredito que em cinco meses tenha havido uma reversão total das políticas ambientais em qualquer Estado-parte. O que quero dizer? Que me surpreende os signatários terem dado aval à conclusão das negociações e, tão pouco tempo depois, essa questão ter surgido como uma ameaça à sua  ratificação. Não me parece consistente. Por isso, eu falava sobre a necessidade de um debate sereno. O tratado UE-Mercosul reforça o Acordo de Paris. As obrigações se tornam muito mais fortes. Quem estiver realmente preocupado com o meio ambiente deveria torcer pela entrada em vigência do tratado.

Valor: Então, na verdade, é um protecionismo de países ou setores específicos na Europa travestido de preocupação com o meio ambiente?

Xiana: Eu não me atreveria a dizer isso. As preocupações da França com o meio ambiente são legítimas. Não tenha dúvida de que o governo francês está realmente preocupado, mas é necessário reforçar as políticas ambientais implementadas por cada lado.

Valor: Há preocupações com a ratificação do acordo pela Argentina de Alberto Fernández, que tem viés mais protecionista do que Macri?

Xiana: A Argentina impulsionou muito o acordo. O novo presidente manifestou-se favoravelmente ao acordo. Isso faz pouco tempo, uma semana, e ele disse apenas que precisaria conhecê-lo melhor, mas não poderia ocorrer de outra maneira. Ele mandou uma mensagem positiva.

Valor: Quais são suas prioridades, no âmbito bilateral, para as relações Brasil-Espanha?

Xiana: Queremos impulsionar o [relacionamento] bilateral em duas vertentes. A primeira é a balança comercial. Agora que a economia brasileira começa a decolar, graças a reformas econômicas ambiciosas e que valorizamos muito, queremos aproveitar esse maior dinamismo. Isso também acontece na Espanha, que cresce acima da média europeia como um todo. Podemos aumentar e diversificar nossos fluxos de comércio. Não apenas de bens do setor agrícola, mas também manufaturados.

Valor: E a segunda vertente?

Xiana: São os investimentos diretos. A Espanha é a terceira maior fonte de investimentos estrangeiros no Brasil e o Brasil é o terceiro maior destino de investimentos da Espanha em todo o mundo. Queremos incrementar a presença das nossas empresas em setores como infraestrutura, energia, financeiro, telecomunicações, seguros. Há outro fenômeno interessante, das empresas brasileiras em processo de internacionalização, que parou um pouco com o início da recessão aqui, mas está despontando novamente. Queremos nos posicionar como uma plataforma para isso. Somos um país de 47 milhões de habitantes, mas com outros 82 milhões de turistas por ano que visitam a Espanha. E uma porta de entrada  para 508 milhões consumidores europeus de alto poder aquisitivo.