Título: Democracia não é antídoto
Autor: Marcelo Ambrosio e Clara Cavour
Fonte: Jornal do Brasil, 09/10/2005, Internacional, p. A8

Pedra de toque da política externa na administração Bush, o estabelecimento de um Oriente Médio democrático - nos moldes ocidentais e sobretudo americanos - não cortará a fonte onde o terrorismo busca inspiração, ideologia e recursos em sua guerra religiosa. A sentença, com o peso da inevitabilidade, joga um véu de incerteza sobre uma crença até então só criticada pelo formato, não pelo conteúdo. E expõe como inúteis os esforços em torno do estabelecimento de regimes baseados em participação popular.

Em longo artigo no último número da revista Foreign Affairs - uma das mais importantes sobre política internacional do mundo - Gregory Gause III, professor de Ciências Políticas na Universidade de Vermont, apontou o erro. É a aposta pura na simbologia das urnas e do voto que vem impondo alto custo em vidas e dinheiro. ''A premissa é falsa. Não há evidência de que democracia reduza o terrorismo. Ao contrário, um Oriente Médio democrático provavelmente resultaria em vários regimes islâmicos ainda mais hostis aos EUA'', escreveu.

Para o professor, o alimento do extremismo é algo mais específico que a natureza do regime. A Al Qaeda assim, não lutaria pela democracia no mundo muçulmano, mas para impor uma visão particular do Estado islâmico, tanto quanto os EUA tentam impor sua visão do que seja um regime democrático. Com isso, cairia por terra o argumento de que a liberdade política isolaria o radicalismo, ''drenando o pântano'' no público árabe - principalmente na Arábia Saudita, Egito e Paquistão - onde as organizações atuam, reduzindo sua capacidade de recrutamento. Eleições, nas circunstâncias locais, teriam resultados imprevisíveis.

Gause III se escora em dados estatísticos. Cita os cientistas políticos William Eubank e Leonard Weinberg, para quem a maior parte dos atentados nos anos 80 ocorreram em democracias e que geralmente vítimas e perpetradores vinham de países livres. Remete a outra pesquisa, da Universidade da Pensilvânia, sobre incidentes entre 1975 e 1997. Esta concluiu que atentados são menos freqüentes onde há participação política maior, mas que a forma como a democracia liberal situa o poder executivo encoraja o extremismo. Já do cientista Robert Pape resgata que alvos dos terroristas suicidas são sempre democracias. Porém, não se movem pelo desejo de implantá-la, mas pela forma como vêem a dominação estrangeira.

No próprio Departamento de Estado há relatórios que sustentam a avaliação. Com base neles, Gause III afirma que entre 2000 e 2003 foram relatados 269 atos terroristas em países tidos como livres. Outros 119 aconteceram em ''parcialmente livres'' e 138 nos ''não livres''. A conta não inclui o conflito entre Israel e palestinos, que ampliaria os ataques contra democracias, e o 11/9 nos EUA, segundo o professor ''por ter sido originado em outros países''.

Se a estatística é preocupante, mais ainda é perceber que a idéia de derrotar o terrorismo, com ou sem um modelo democrático, está longe de ser viável.

- É pouco realista. Não se pode eliminá-lo como ferramenta em conflitos políticos - afirma Gause III, ao JB. - Os EUA podem fragmentar a Al Qaeda e reduzir sua capacidade. Isso requer intervenção militar, porém muito mais coisas simples como cooperação de Inteligência, policial e diplomática para reduzir o apoio público à rede - completa.

O professor aponta uma brecha aparentemente invisível por onde se pode obter melhores resultados, mas a longo prazo.

- Encorajar governos muçulmanos, organizações civis, religiosas e lideranças para dissolver a legitimidade da visão do Islã que sustenta a Al Qaeda - afirma. - Mas é preciso equilíbrio entre necessidade de segurança e direitos individuais - alerta.

O problema de promover a democracia no Oriente Médio não é a premissa de que os árabes não a queiram. O alto comparecimento às urnas no Iraque e no Afeganistão confirma que os povos rejeitam a política da América, não seus ideais. A questão reside, sim, na certeza de que Washington não gostará dos governos que delas nascerão. Pesquisa do Instituto Zogby em sete países, de 2002, mostrou a rejeição aos EUA indo de 48% (Kuwait) a 61% (Jordânia), 76% (Egito) e 87% (Arábia Saudita). Um ano depois da guerra começar, consulta da Pew Global Attitudes mostrou que o percentual entre os jordanianos, tidos como aliados e moderados, por exemplo, já havia passado para 93%.