Título: Liberdade apenas no discurso
Autor: Sheila Machado
Fonte: Jornal do Brasil, 09/10/2005, Internacional, p. A11

Enquanto os chanceleres da União Européia concordavam, na segunda-feira, com o início das negociações para a adesão da muçulmana Turquia ao bloco, em Estrasburgo, na França, uma comissão do InterGrupo Gays e Lésbicas (ILGA, sigla em inglês) apresentava ao Parlamento Europeu a situação da ONG turca Kaos GL, que por defender os direitos civis de gays, lésbicas e transexuais está ameaçada de fechamento pelo governo de Ancara.

Diferentemente dos países que ampliaram o bloco em 2004, a economia não é o principal obstáculo que a Turquia deve vencer se quiser entrar na UE. Apesar dos recentes e lentos progressos, o país ainda é criticado quanto ao respeito aos direitos humanos - incluindo o fim das torturas nas prisões, a autodeterminação da minoria curda e o direito feminino.

- Os eurodeputados se mostraram sensíveis à questão da Kaos e manifestaram apoio - conta ao JB o turco Kürsad Kahramanoglu, presente à reunião por ser secretário-geral da ILGA.

A confusão começou em meados de setembro, quando o vice-governador da capital Ancara, Selahattin Ekremoglu, escreveu uma carta à Kaos informando sobre a abertura de um processo na Corte para dissolver a ONG. O político sustenta que o nome e os regulamentos do grupo violam um parágrafo do Código Civil Turco que proíbe ''o estabelecimento de qualquer organização que vá contra as leis e os princípios da moralidade''. Para a Human Rights Watch (HRW), acabar com um grupo que defende os direitos de gays, lésbicas e transexuais é violar, por sua vez, a liberdade básica de associação e expressão.

- A Turquia tem um longo registro de supressão dos direitos humanos. Esse perigoso novo movimento mostra que velhos hábitos custam a morrer e levanta dúvida quanto aos avanços na proteção da sociedade civil - criticou Scott Long, diretor do Projeto de Direitos dos Gays, Bissexuais e Transexuais da HRW.

Não há no país uma lei que criminalize o homossexualismo. No entanto, gays e transexuais enfrentam muito preconceito, sem que possam ser amparados pela Justiça.

- É muito difícil para alguém fazer uma queixa nesse sentido, pois as leis turcas não reconhecem discriminação baseada em orientação ou gênero sexual - criticou o diretor da Kaos, Avukat Hakan.

A Kaos GL foi fundada há 11 anos e opera, em Ancara, um centro de apoio social e cultural para os não-heterossexuais. O grupo advoga por medidas que acabem com a discriminação e a violência e publica, desde 1999, uma revista registrada como legal. Em 15 de julho, pediu que o Ministério do Interior a reconhecesse oficialmente como uma organização não-governamental. O ministro Abdulkadir Aksu inicialmente aprovou o pedido, mas Ekremoglu, que se reporta ao Ministério, respondeu com o processo para fechar a Kaos.

- Referências como ''moralidade'' no Código Civil ainda oferecem pretexto para discriminação e abuso - lamenta Long.

A Turquia ratificou a Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos, que ampara a liberdade de expressão e de associação e proíbe a discriminação baseada em sexo. Em 1994, o Comitê de Direitos Humanos da ONU postulou que a ''orientação sexual'' é um status protegido contra segregação. Ancara também assinou a Convenção Européia de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. E a Corte Européia de Direitos Humanos já condenou, em uma série de casos, a discriminação baseada em orientação sexual.

''Aos poucos, o governo relaxa as restrições a associações. De qualquer maneira, as ONGs são vistas com suspeita pelas autoridades e vivem um cotidiano de estado de sítio: reuniões e conferências de imprensa são regularmente monitoradas por policiais à paisana, com câmeras de vídeo. Promotores têm carta branca para abrir processos'', escreveu no ano passado a HRW, em documento sobre os progressos da Turquia rumo à admissão na UE.

Mas apesar do histórico, Patricia Prendiville, diretora-executiva da ILGA-Europa, acredita que o governo não conseguirá fechar a Kaos.

- Não seria bem visto pela Comissão Européia ou pelo Parlamento do bloco - justifica.

Kahramanoglu acrescenta que o caso não afetaria a chance turca de entrar na UE.

- Mas se a situação geral dos gays não melhorar durante os 10 anos de negociação de adesão, tudo pode mudar - acredita.

Segundo um levantamento da Kaos, há apenas seis países muçulmanos onde ser gay é legal: Turquia, Albânia, Bósnia-Herzegovina, Azerbaijão, Turcomenistão e Cazaquistão.

- Não é coincidência que eles tenham laços fortes com a comunidade européia - destaca Hakan.

Kahramanoglu lembra ainda que, dos seis, é a Turquia que tem as leis mais avançadas:

- Transexuais têm operação de mudança de sexo pagas pelo poder público e obtêm facilmente novas identidades, com o sexo escolhido. Mas ainda é trabalho da Kaos e de outras ONGs protegê-los contra crimes de ódio, que não recebem a devida atenção da polícia.