Título: Contra a esperteza
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 09/10/2005, Opinião, p. A14
Os próximos dias ajudarão a redefinir os contornos das relações políticas que atualmente regem representantes e representados no Brasil. Será possível, afinal, identificar as manobras e as intenções definidoras das decisões a serem tomadas sobre o processo de cassação de deputados acusados de envolvimentos nos escândalos de corrupção. A Mesa Diretora da Câmara, agora conduzida pelo deputado Aldo Rebelo - fiel aliado do Palácio do Planalto -, enfrentará sua prova dos noves ao analisar os processos. Nas mãos do ex-ministro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a tarefa de livrar a Câmara do espírito corporativista dos tempos de Severino Cavalcanti. Também deverá mostrar total descompromisso com a alegria exibida pelos réus das cassações em curso no dia de sua eleição. Igualmente importante será evitar que a Casa se curve aos interesses do governo e do PT para reduzir a dimensão das punições desejadas pelos cidadãos de bem. Dos passos seguintes depende a credibilidade do novo comandante da Câmara, do restante do mandato petista e da legitimidade do Congresso.
Até terça-feira, quando presumivelmente será dada a palavra final de Rebelo - que tem prometido analisar com ''espírito de isenção, de rigor, de equilíbrio e de justiça'' -, é provável que muitos dos acusados decidam renunciar. Essa constitui a estratégia habitual daqueles que evitam se submeter ao julgamento do plenário e, sobretudo, buscam manter o direito de se candidatar nas próximas eleições - manobra incentivada pelo Palácio do Planalto, que pretende encurtar o processo de desgaste político em que imergiu nos últimos meses.
A esperteza política revelou-se com mais clareza na sexta-feira, a partir das declarações de parlamentares investigados e das conversas informais de ''mensalistas''. Somadas, tais peças reforçam a orientação do governo para que renunciem ao mandato petistas e demais deputados da base aliada (PP, PL e PTB), denunciados pelas CPIs dos Mensalão e dos Correios. Em troca da renúncia, os deputados implicados teriam a garantia de legenda para disputar novo mandato em 2006.
Um ''acórdão'' tão preocupante quanto as afirmações do presidente Lula, cujas palavras revelam um jeito particular de observar as denúncias dos seus aliados. ''Erros todos cometem'', resumiu com singeleza espantosa. ''Houve este erro, mas isso não significa que os companheiros sejam corruptos. Entre erro e corrupção, há uma grande diferença''.
À receita palaciana para uma versão light da pizza em gestação convém adicionar as tentativas forjadas de livrar uma parcela dos acusados da perda do mandato. Na sessão da quarta-feira, circulou pelos corredores da Câmara a informação de que haveria um acordo para absolver quatro deputados. Foi preciso que o receio da reação da sociedade fosse maior do que a pressão dos seus pares para que a Corregedoria, por uma margem mínima, garantisse o pedido de cassação dos envolvidos.
Batalhas similares ocorrerão na Mesa da Câmara e no Conselho de Ética - caminhos pelos quais os processos têm de passar antes de serem encaminhados ao plenário para votação secreta. Com a imprescindível tarefa de lancetar os tumores da crise, os próximos dias exigirão vigilância implacável da sociedade, sob pena de mentores da impunidade acabem por promover abrandamentos no atacado.