Valor Econômico, v.20, n. 4869, 30/10/2019. Brasil p.A2

 

Fundo soberano saudita poderá financiar projetos de até US$ 10 bi


Segundo os ministros Onyx Lorenzoni e Ernesto Araújo, o dinheiro será gerido por um fundo a ser criado pelo governo brasileiro, e não haverá contrapartida


Por Maiá Menezes 

Em dia de crise com o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Jair Bolsonaro deixou para os ministros da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o anúncio de que a monarquia da Arábia Saudita deverá investir até US$ 10 bilhões no Brasil. Segundo eles, o dinheiro será gerido por um fundo a ser criado pelo governo brasileiro e não haverá contrapartida. Os recursos são do fundo soberano saudita.

O anúncio foi feito após encontro de trabalho entre Bolsonaro e o príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman. “Os setores serão decididos em comum acordo. Feito da relação que estamos construindo com o mundo árabe”, disse Araújo. A nota conjunta diz que “os dois lados expressaram seu apoio à concordância” do fundo saudita “em explorar potenciais oportunidades de investimentos mutuamente benéficos em até US$ 10 bilhões”.

Após chegar de jantar com oito líderes que participarão do Future Investment Initiative, Bolsonaro falou sobre o assunto. Segundo ele, foi confirmado o investimento de até US$ 10 bilhões no Brasil, anunciado mais cedo por Lorenzoni e Araújo. “Propus ao príncipe herdeiro investimentos na baía de Angra [RJ] para transformá-la em uma Cancún [México]. Depois de uma explanação, ele disse que está pronto para investir na baía de Angra, mas isso passa por um projeto para revogar um decreto ambiental”, afirmou o presidente.

De acordo com Bolsonaro, tem muita gente que quer vir ao Brasil, mas, quando vê dificuldades, burocracias e o tempo que demora com conexões, acaba desistindo. “Criou-se uma amizade [com o príncipe] que não é de agora, que nos faz ficar mais abertos a esse tipo de negócio. Eles abriram para a gente. Uma saída para o Pacífico seria muito importante. E US$ 10 bilhões é muito dinheiro.”

O ministro da Casa Civil lembrou que o fundo soberano já investiu em cinco países - EUA, França, Japão, África do Sul e Rússia. O Brasil deverá ser o sexto. “Vamos organizar um conselho de cooperação entre os dois governos, com a iniciativa privada dos dois países, para definir em que áreas e em quanto tempo esses recursos chegarão ao Brasil.” Em “duas ou três semanas”, segundo ele, o conselho deverá estar funcionando.

O ministro citou o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e os leilões de óleo e gás, rodovias e ferrovias. Onyx mencionou a Ferrogrão (do Mato Grosso ao Pará) como exemplo de interesse para aplicação do dinheiro. “Temos economias complementares. É uma notícia extraordinária.” Ele disse ainda que, nos últimos dez anos, não houve nada maior do que isso. A expectativa do governo é que, depois desse, vários outros fundos tenham interesse no Brasil, já que a proposta é incomparável em termos de retorno.

Perguntado sobre a dura política de direitos humanos na Arábia Saudita, Araújo afirmou que o país é uma “monarquia estável”, importante em sua região. “O príncipe tem feito um trabalho de abertura e de liberalização. Vão ser a próxima cúpula do G-20.”

O ministro da Casa Civil afirmou ainda que a expectativa é que o país receba mais R$ 110 bilhões na cessão onerosa. Onyx reafirmou que não houve exigência de contrapartida. Ressaltou ainda que os sauditas pretendem acessar a América Latina por meio do Brasil e confirmou a exportação de frango ao país. Em relação a uma eventual contrapartida brasileira no que diz respeito à questão nuclear no Irã, Araújo foi taxativo: “Não foi contrapartida nossa. Ouvimos que é uma preocupação o Irã, que gera instabilidade na região. Mas não temos posicionamento sobre este ou aquele país”.

Outra medida anunciada pelos ministros, também sem a presença de Bolsonaro, foi a desburocratização recíproca da concessão de visto entre os dois países. O valor do visto passa a US$ 80 e poderá dar acesso a múltiplas entradas. A validade de visto de trabalho, que hoje é de um ano, passará a cinco. Araújo chegou a dizer que os vistos seriam isentos nos dois países, mas depois a assessoria do Itamaraty detalhou as mudanças.

 

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Itamaraty adota silêncio sobre Alberto Fernández


Declarações públicas do jogo política não têm necessariamente aderência à realidade diplomática


Por Daniel Rittner 

Uma coisa são as declarações públicas e o jogo político. Outra é o trabalho de bastidores da diplomacia profissional. Alberto Fernández fazendo “Lula Livre” com a mãozinha e Jair Bolsonaro dizendo que os argentinos escolheram mal são parte do show. É como cada um dialoga com seu eleitorado.

Fernández, que nunca foi exatamente um radical de esquerda, precisa manter correntes menos “light” do peronismo reunidas em torno de si, e não de sua vice, Cristina Kirchner. Diante da calamidade econômica, não há espaço para medidas populistas. Então, vem a política externa - suspeita de sempre que é - como campo propício para dar respostas mais atrevidas ao eleitorado e mostrar conexão com a vontade das urnas.

Um grau de tensão permanente com Fernández não é ruim para Bolsonaro - e vice-versa. Os dois lados têm um pouco a ganhar com essa fervura, principalmente junto ao “eleitorado raiz”. A missão da diplomacia é não deixar a temperatura subir para um ponto de não retorno. Até onde se sabe, é como o Itamaraty tem trabalhado.

Até onde se sabe porque algo estranho tem acontecido no Ministério das Relações Exteriores. Em 2011, quando Dilma Rousseff tomou posse e chamou de “medieval” a prática de apedrejamento de mulheres acusadas de infidelidade conjugal no Irã, a leitura dos diplomatas foi de que estava em marcha um ajuste na política externa e ela não toleraria violações aos direitos humanos.

A embaixadora do Brasil na ONU falou grosso com a Venezuela em Genebra. Deu ruim. Os venezuelanos reclamaram com o Palácio do Planalto e partiu do então assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, uma instrução clara: nenhuma palavra sobre o regime chavista deveria sair da boca de diplomatas sem o consentimento do Planalto. Nem pelos microfones nem “off the record”. Resultado: nada provocava tanto desconforto no Itamaraty quanto alguém perguntando o que Brasília pensava em fazer com Caracas.

Agora vive-se o mesmo clima em relação à Argentina. A diplomacia já abriu canais de diálogo com o círculo de auxiliares próximos de Alberto Fernández? Há chance de Bolsonaro ir à posse em 10 de dezembro? Como ficarão as relações bilaterais a partir daí? E se o presidente eleito visitar Lula novamente em Curitiba? Esse é o tal ponto de não retorno?

Ninguém nos escalões mais altos do Itamaraty, mesmo em conversas reservadas, oferece respostas claras a essas perguntas. O discurso padrão é “vamos esperar para ver”. Tudo bem, uma coisa é não saber responder. Outra é não querer ou não poder responder. Há silêncio generalizado sobre o futuro do Mercosul e das relações Brasil-Argentina. No bolsonarismo, Buenos Aires é a nova Caracas.

 

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‘Estamos preparados para o pior na Argentina’, diz Bolsonaro


Presidente afirma que não pensa em “romper em nada” com país vizinho após vitória de Fernández

 

 

Um dia depois de afirmar que não iria cumprimentar Alberto Fernández, presidente eleito da Argentina, Jair Bolsonaro disse ontem que seu governo não pensa em “romper em nada” com a Argentina, mas que está preparado para o “pior”.

Segundo o presidente brasileiro, a expectativa é que o sucessor de Mauricio Macri continue com as práticas do atual mandatário argentino: “abertura, liberdade econômica e respeito às cláusulas democráticas do Mercosul”.

Porém, Bolsonaro ressaltou, em entrevista ao “Estado de S. Paulo”, que a receita econômica prometida por Fernández foi “em parte adotada no Brasil no passado e não tem como dar certo”, citando congelamento de preços e aumento de salário na “base do canetaço” - em referência a supostos planos do argentino. “Isso não vai dar certo. Seria muito fácil fazer economia dessa maneira, mas não existe esse milagre.”

Na segunda-feira, Bolsonaro havia criticado o presidente eleito depois que Fernández chamou de injusta a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva. “Eu lamento. Não tenho bola de cristal, mas acho que os argentinos escolheram mal.”

Em várias oportunidades neste ano, Bolsonaro manifestou seu apoio à reeleição de Macri.