Título: Universidade pública e nação
Autor: Carlos Lessa*
Fonte: Jornal do Brasil, 09/10/2005, Economia & Negócios, p. A18

Em um mês conheci duas manifestações fortes contra a universidade pública. O prof. Peter Lindert, da Universidade da Califórnia e o dr. Gustavo Ioschpe consideram absurdamente elevado o custo relativo da universidade pública nos gastos de educação brasileira. O dr. Gustavo acabou de merecer o Prêmio Jabuti 2005 com A ignorância custa um mundo. Ambos defendem a massificação do ensino de base e a melhoria de sua qualidade. Ambos consideram ser absurda a relação de 11 a 15 vezes o custo com um universitário em relação a um aluno do ensino médio. O prof. Lindert recomenda o remanejamento dos recursos federais do ensino superior para o ensino primário e médio. O dr. Ioschpe insinua que a universidade pública brasileira é um buraco sem fundo de desperdício, ao afirmar: ¿Não é que falte dinheiro; ele é muito mal gasto¿. Aparentemente, para o prof. da Califórnia, o ensino superior em país periférico é dispensável e um luxo. Para o dr. Ioschpe, a questão da educação é a chave do desenvolvimento. Os dois não recitam a mesma cartilha, porém é inequívoco o substrato neoliberal. Não falam que, no Brasil, o volume de juros pagos de dívida pública (R$ 146 bilhões nos últimos 12 meses) é muito maior do que o gasto com educação. Não se escandalizam com a repugnante taxa de juros real (13% a 14% ao ano, 23 vezes maior que os países desenvolvidos e 11 vezes superior a dos países emergentes).

A qualidade e o tamanho do ensino superior são decisivos para a montagem do sistema educacional. A Universidade não é o andaime da educação nacional, e sim seu alicerce. É o espaço de reposição de gerações nacionais. Seu trabalho se projeta em relação ao futuro. É o último estágio que elabora ¿o coração e a mente¿ da geração ¿ que se espera ¿ mantenedora do ideário da Nação. É a universidade nacional indispensável para a afirmação e exercício da soberania. Os impérios sempre bloquearam o ensino superior nas colônias. Por outro lado, é a universidade o melhor cartão de visita pelo qual uma nação afirma sua presença no mundo. É o modo civilizado de presença, em vez da baioneta e da moeda dominante. Finalmente, a consolidação e o aperfeiçoamento da república exige o trabalho sistêmico e pouco espetacular das instituições de ensino superior. Custa caro: façam o cálculo do custo de formação de um músico de oboé, porém sem ele não há Orquestra Sinfônica Nacional. Um cirurgião cardíaco ou neurológico exige, além dos seis anos de graduação, outros seis a sete anos de residência. Pesquisadores que desenvolvem células-tronco, membrana molecular, nanotecnologia, enriquecimento de urânio, medicamentos para doenças negligenciadas, novas sementes e variedades agropecuárias etc, levam tempo e cursos para serem formados.

O prof. Lindert propõe para o Brasil atrofiar a universidade pública. Talvez espere que nos convertamos em uma plataforma de mão-de-obra relativamente qualificada e barata. Pensa, sem dizer, que profissionais plenos de nível superior são para as nações centrais.

A pior armadilha em defesa da educação é sua redução economicista. Justificá-la pela formação de recurso humano para o mercado e não do cidadão qualificado para a nação do presente e do futuro. Por si só, educação não produz desenvolvimento. Na América do Sul, a Argentina e o Uruguai têm padrões educacionais superiores aos brasileiros, entretanto o Brasil tem sido, historicamente, mais dinâmico. Quem consolida a formação profissional é o emprego. A não-inclusão social ou sua precariedade produz o ¿analfabeto de segundo grau¿. O Brasil, ao não gerar empregos, tem levado engenheiros a concorrerem ao cargo de policial rodoviário. No Rio, um deles, com diploma de mestrado da Universidade de Boston, apresentou-se ao concurso para gari da Comlurb. A criação de posto de trabalho exige investimento. Um novo emprego na petroquímica custa US$ 300 mil. O economicismo supõe que a transmissão do conhecimento cria, por si só, o emprego da petroquímica ou da siderúrgica e faz surgir energia elétrica e o melhor porto, ou seja, o educado cria seu próprio espaço. Isto é verdadeiro para o indivíduo, não para a sociedade.

O Brasil perde o ¿bonde da história¿, entretanto cresceu de 1930 a 1980, 7% ao ano. Está estagnado de 1981 até hoje, crescendo medíocres 2,3% ao ano. Perseguiu o projeto nacional desenvolvimentista durante aqueles 50 anos. Que merece críticas, porém multiplicou empregos. Hoje patina na mediocridade, tendo mergulhado passivamente na ¿globalização¿ e submisso disciplinadamente às recomendações neoliberais. Neste Brasil que não cresce, cai a renda do setor informal. Os novos empregos criados para pessoas com 11 ou mais anos de instrução não superam, em média, 1,5 salário mínimo mensal.

Atingir 10% de matrícula é fundamental para ampliar a república, o direito à cidadania e a livre escolha do destino individual. A educação deve ser mensurada; testes de aprendizado devem ser aplicados. Contudo, cabe advertir que é difícil avaliar a qualidade da universidade. O professor primário brasileiro não é ideologizado. Simplesmente é muito mal remunerado, pouco estimulado e o magistério tende a ser desvalorizado em uma sociedade que se move pela mercadoria e riqueza.

As famílias de alta renda devem contribuir para a universidade pública. Em contrapartida, o jovem de família de baixa renda deve receber bolsa-auxílio. Para não lançar este processo em mãos da Secretaria do Tesouro, deveriam surgir fundações universitárias, geridas pela sociedade civil, que administrariam os critérios e tabelas de contribuição e outorga de bolsas. A universidade não deve ser uma empresa alternativa de prestação de serviços técnicos às organizações privadas; em matéria de tecnologia, cabe reconhecer que o tão desejado segredo industrial não é compatível com a ambiência universitária. A extensão deve ser pensada como uma dimensão da formação universitária e não uma substituição de órgãos públicos de ação social. É impossível homogeneizar o ensino superior. Universidades existirão com qualidade concentrada em certas áreas. Para evitar a reprodução de desigualdades, é necessária admissão por concurso e o apoio aos estudantes de família pobre no acesso aos cursos de alta qualidade. Quero felicitar o dr. Ioschpe quando afirma que ¿o sistema educacional brasileiro não é racista, mas que coloca os pobres para o escanteio¿. Sou inteiramente favorável ao sistema de meritocracia; se as vagas são poucas, que ingressem os jovens brasileiros mais promissores; isto se projeta dramaticamente sobre a qualidade da rede de ensino médio e exige um sistema de bolsas.

O verdadeiro drama da educação no Brasil reside na opção neoliberal pelo rentismo. Os R$ 145 bilhões de juros de dívida pública beneficiam algumas poucas dezenas de milhares de brasileiros ricos, e muito ricos. Temos competência e, obviamente, recursos potenciais para elevar o padrão e ensino no Brasil. Temos que deter a sangria dos juros para robustecer a educação para a nação brasileira

*Economista, professor titular da UFRJ e ex-presidente do BNDES (carlos-lessa@uol.com.br)