O Globo, n. 32684, 31/01/2023. Brasil, p. 11

Ianomâmis em foco

Alice Cravo
Bruno Abbud
Bruno Góes
Mariana Muniz


Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez ontem uma reunião ministerial para definir o combate rápido ao garimpo e outras atividades criminosas em terras ianomâmis, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso determinou a apuração da possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro por genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas.

— Tivemos um governo que pode ser enquadrado como genocida. Ele (Bolsonaro) fazia propaganda de pessoas de garimpo, que jogavam mercúrio. Tá cheio de discurso dele dizendo isso. Então é uma decisão (nossa) parar com a brincadeira, não terá mais garimpo. Se vai demorar um dia ou dois dias, eu não sei. Pode demorar um pouco, mas nós vamos tirá-los — disse Lula após reunião com o chanceler alemão, Olaf Scholz. — Se o Estado brasileiro quer tomar decisão, ele toma e acontece. Já tiramos garimpeiros de determinados locais. Hoje assinei um decreto dando poderes às Forças Armadas, ao ministro da Defesa, ao Ministério da Saúde. Vamos tomar todas as atitudes para acabar com garimpo ilegal.

O presidente disse que o governo proibiria “barcaças de transitar com combustível” nessas áreas e que não haveria mais autorização para mineradoras realizarem pesquisas do solo em “qualquer área indígena”.

O Conselho Indígena Ianomâmi informou ontem que um bebê de seis meses morreu em uma aldeia por desnutrição. A mãe da criança está internada com malária, de acordo com o conselho.

Operação anunciada

A determinação de Barroso foi feita à Procuradoria-Geral da República, ao Ministério Público Militar, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à Superintendência Regional da Polícia Federal de Roraima. O ministro ordenou a remessa às autoridades de documentos que “sugerem um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, agravando tal situação”.

Barroso citou como exemplos a publicação no Diário Oficial, pelo então ministro da Justiça Anderson Torres, de data e local de uma operação sigilosa de intervenção em terra indígena, além de indícios de alteração do planejamento no momento de realização da Operação Jacareacanga, pela FAB, o que teria servido de alerta aos garimpeiros.

O Ministério Público Federal já começou ontem a apurar a responsabilidade do Estado brasileiro na crise ianomâmi. O MPF informou que entende que já há muitas evidências para a imediata responsabilização: “Tal acervo revela um panorama claro de generalizada desassistência à saúde, sistemático descumprimento de ordens judiciais para repressão a invasores do território indígena e reiteradas ações de agentes estatais aptas a estimular violações à vida e à saúde do povo ianomâmi”.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania divulgou também ontem um relatório que aponta três descumprimentos de exigências judiciais relativas aos ianomâmi pela ex-ministra Damares Alves, entre 2019 e 2022. Ao todo, a pasta comandada por Damares teria se omitido em relação aos ianomâmis em pelo menos 22 ocasiões, segundo o documento.

O então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos teria ignorado ao menos sete recomendações e pedidos de órgãos como ONU, Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e Ministério Público Federal (MPF), “seja redirecionando casos de sua competência à Funai, à Secretaria de Saúde Indígena, ao Ministério da Justiça, seja simplesmente manifestando não ser o tema de sua atribuição e devolvendo os casos aos remetentes”.

“Têm de se aculturar”

O Ministério Público Federal em Roraima avalia se há potencial discriminatório nas declarações do governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), em entrevista à Folha de S. Paulo publicada no domingo. Denarium disse que a desnutrição dos ianomâmis é um “problema recorrente há 20 anos” e a responsabilidade deve ser atribuída às várias gestões do governo federal.

— Tenho 260 escolas em comunidades indígenas. Eles querem ser advogados, professores, médicos. Eu acho correto. Eles têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho —afirmou o governador, que chegou a recomendar que os indígenas explorem suas terras.

— Imagine você desempregado, pobre, passando fome, doente. Na sua casa tem um quadro do Picasso que vale US$ 1 bilhão. O que você faria? Venderia. Aí pega o dinheiro e melhora sua qualidade de vida — afirmou Denarium, que também defendeu empregos gerados pelo garimpo.

“Um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos” Luís Roberto Barroso, ministro do STF, ao pedir a investigação de autoridades “Se vai demorar um dia ou dois dias, eu não sei. Pode demorar um pouco, mas nós vamos tirá-los”

Lula, presidente, sobre a retirada de garimpeiros da terra ianomâmi