Valor Econômico, v. 20, n. 4900, 13/12/2019. Empresas, p. B12
 

Para Iata, legislação ajudará a atrair grupos estrangeiros
Entrevista: Alexandre de Juniac, Empresário 


 

O Brasil é o primeiro país no mundo a permitir 100% de participação estrangeira no transporte aéreo, e essa abertura deverá atrair companhias estrangeiras para operar no mercado brasileiro. É o que prevê o diretor-geral da Associação Internacional do Transporte Aéreo (Iata), o francês Alexandre de Juniac, em entrevista ao Valor. Para ele, a consolidação do setor na América Latina deverá prosseguir.

A Iata reclama, ao mesmo tempo, que o Brasil é campeão mundial de ações legais contra companhias aéreas. A estimativa é que isso poderá custar R$ 1 bilhão às empresas somente neste ano. Juniac diz estar em discussão com o governo para firmar um compromisso que envolva os direitos do consumidor e os das empresas.

A Iata tem 290 membros que representam 82% do total do tráfego aéreo global. A previsão é que essas companhias encerrem o ano com faturamento de US$ 838 bilhões. O lucro líquido esperado é de US$ 25,9 bilhões, quase US$ 10 bilhões a menos que a projeção feita no ano passado.

O movimento de passageiros e o de cargas sofreram desaceleração no rastro de uma expansão econômica global mais lenta, guerras comerciais e turbulências políticas e sociais que derrubaram o turismo em vários países.

Juniac indica ligeira melhora para 2020, mas observa que as companhias, incluindo na América Latina, são frágeis financeiramente em razão da margem pequena com que operam. Ele foi presidente e CEO da Air France-KLM (2013-2016) e dirige a Iata desde setembro de 2016.

 

A seguir, os principais trechos da entrevista de Juniac, em seu escritório com vista para o aeroporto de Genebra:

Valor: O desempenho das companhias aéreas está mais fraco que o previsto. O que deu errado em 2019?

Alexandre de Juniac: O crescimento econômico foi menos forte que o previsto. Houve desaceleração tanto no transporte de passageiros quanto no de cargas. Os resultados foram efetivamente ruins no de cargas. Lembro que quando eu dirigia a Air France-KLM, vivi cinco anos de horror, de forma que já vi resultado muito pior que o de agora [queda de 3,3%] em cargas. Neste ano, também tivemos dificuldades não previstas na Índia e na Europa, onde o movimento de câmbio colocou companhias aéreas em dificuldades muito grandes. E houve falência de companhias também.

Valor: Qual o impacto das convulsões na América Latina sobre os negócios?

Juniac: Há impacto sobre o turismo, no comércio, nos investimentos. Para 2020, trabalhamos com expectativa de que essa situação não piore [na região]. A mesma coisa vale para as guerras comerciais; esperamos que não aumentem mais, inclusive porque há eleição americana e tudo vai ficar congelado.

Valor:  Para 2020 o cenário não muda muito?

Juniac: Será um ano com ligeira estabilização, nada formidável, mas não haverá recessão.

"Existem dois problemas complicados no Brasil: o excesso de ações legais contra empresas aéreas e o custo de operação”

Valor:  Poucas empresas aéreas continuarão realmente lucrativas?

Juniac: Isso é verdadeiro em todas as regiões. As lucrativas são limitadas a algumas, enquanto a maioria se bate pela sobrevivência. A América do Norte concentra a metade dos lucros, vindo depois Europa e Ásia-Pacífico. E mesmo nos países onde as companhias aéreas têm lucro, principalmente na Europa e na Ásia, os ganhos são concentrados em poucas  empresas. O resto trabalha na linha do equilíbrio; elas são muito frágeis.

Valor:  As companhias aéreas são frágeis na América Latina?

Juniac: Sim, sim... São frágeis financeiramente, porque as margens são muito pequenas, em torno de 3,4%. A Avianca Brasil pediu “falência” [está em recuperação judicial e parou de voar] e a Avianca (Colômbia) passou por dificuldades e acaba de comunicar o fechamento de seu plano de recapitalização.

Valor:  Nesse cenário, haverá mais consolidação no transporte aéreo na região?

Juniac: Em geral, olhando o mundo, vamos progressivamente em direção de mais consolidação porque o setor de aviação é fragmentado demais, tem muitos operadores e é muito frágil. Se todo mundo ganhasse dinheiro, tudo bem, mas não é o caso. Mas um dos obstáculos à consolidação são regras sobre a participação estrangeira, que impedem uma consolidação internacional.

Valor: No Brasil, a legislação agora facilita a participação estrangeira no setor.

Juniac: Sim, o Brasil é o primeiro país no mundo a permitir ao estrangeiro ter 100% de participação. Mas houve muita luta...

Valor: Isso atrairá realmente companhias estrangeiras para o mercado brasileiro?

Juniac: Ah, sim. Isso toma um certo tempo, mas é um passo fundamental. O Brasil é um grande país para a aviação, com classe média em expansão, trajetória de crescimento. É um dos raros países que têm um construtor de avião, a Embraer. E nem a metade da população viaja de avião. O Brasil é um grande mercado do futuro. Numa indústria de capital  intensivo, margens pequenas, grande competição, o caminho é a consolidação. Quando diminuímos os obstáculos à consolidação, normalmente os estrangeiros vão [para esse mercado]. Em termos de abertura, o Brasil está na frente. Mas a abertura 100% do mercado a companhias estrangeiras não é a única coisa. Há outras restrições no Brasil.

 

Valor:  Por exemplo?

Juniac: Há dois problemas complicados no Brasil [que afetam os custos das companhias]. Um é o excesso de ações legais contra as empresas aéreas, mesmo por razões que não são de sua responsabilidade. Isso tomou uma dimensão tal que se tornou uma máquina de fazer dinheiro para os advogados. O Brasil tem, hoje, o maior número de ações legais no mundo  contra companhias aéreas. Esse “custo Brasil” pode facilmente passar de R$ 1 bilhão em 2019. O segundo problema é o custo de operação em certas áreas, como o preço do combustível. O Brasil é um país produtor de petróleo e tem o custo do combustível mais elevado no mundo. Há também encargos elevados de infraestrutura.

 

Valor:  Os passageiros precisam ter direito de proteção, não?

Juniac: Não dizemos que o passageiro não possa ter direitos. O que queremos é o bom compromisso entre o direito do passageiro e o das companhias, senão fica impossível para nós. No Brasil, a situação se tornou uma doença de litígios. O fato de haver um juiz especial nos aeroportos é ir longe demais. Ter juiz no aeroporto incita o passageiro a entrar com uma ação legal contra a companhia, mesmo se não há nada [errado]. Temos esses problemas também na Europa com a resolução 261 [para garantir assistência ao passageiro no caso de grande atraso ou cancelamento de voo, e para oferecer proteção a passageiros mais vulneráveis, além de mecanismos de indenização]. Aqui na Europa há escritórios de advogados que esperam o passageiro na saída do avião para perguntar se eles têm alguma queixa a fazer. Isso vai longe demais. E, no Brasil, as queixas são frequentemente de causas fora de controle da companhia aérea. Se o voo tem atraso porque o Controle de Tráfego Aéreo não funciona, não é um problema da empresa, mas ela vai pagar ao passageiro.

 

"Na Europa houve tentativa de taxar o uso de banheiro no avião, mas o mercado coloca limites sobre isso”

Valor:  A Iata fala de fraudes de US$ 1,4 bilhão com passagens na América Latina, metade podendo ser no Brasil. O que vocês estão fazendo sobre isso?

Juniac: Trabalhamos com as companhias na América Latina para combater a fraude. No Brasil isso é um problema, mas não tanto quanto as ações legais e o custo do combustível.

Valor: Quais modelos de negócios vão prevalecer no futuro?

Juniac: Acho que teremos dois. O modelo de baixo custo vai continuar a se desenvolver, sobretudo no ponto a ponto. E as aéreas com serviço completo continuarão nos voos de longa distância e para alimentar “hubs”; há demanda para isso.

Valor:  Os consumidores ficam perdidos quando compram a passagem de uma companhia e, quando chegam ao aeroporto, o voo é operado por outra. Isso não é problemático?

Juniac: Olhe, o passageiro não reclama muito disso, não. No momento não é problema. Pode até vir a ser, mas agora não é.

Valor:  A tendência continuará sendo a redução de preço das passagens e dos serviços?

Juniac: Acho que vamos continuar numa redução de preço. Mas talvez não tão forte e rápida como nos anos anteriores. Em 20 anos, o preço da passagem aérea diminuiu 62% em termos reais. É algo gigantesco. Ainda teremos alguma redução, com pagamento por serviços adicionais.

Valor:  Haveria mesmo companhias que pensam em pesar os passageiros para cobrar taxa dos mais gordos. Vamos chegar a isso?

 

Juniac: Não acho. Na Europa, houve tentativa de taxar o uso do banheiro, na [companhia irlandesa de baixo custo] Ryanair. Mas, francamente, o mercado coloca limites sobre isso, não há necessidade de reguladores.

 

Valor: Mas há saturação em aeroportos, frustração dos passageiros por causa do espaço pequeno nos aviões...

Juniac: Estamos procurando melhorar o segmento em terra, no aeroporto. A experiência dos passageiros realmente não é boa no controle de segurança, “check in”, bagagem, filas. Apostamos na tecnologia. Colocamos fim à má gestão de bagagem, que era um grande problema. Também estamos tentando fazer que os aeroportos sejam mais amigáveis aos passageiros,  com áreas de brinquedos para as crianças, melhor atendimento para pessoas deficientes. Sobre o espaço no avião, há um limite físico de toda maneira. Mas tudo isso é feito para densificar os aviões, senão as companhias não ganham dinheiro ou não podem oferecer passagens a preços competitivos. Acho que estamos perto de um “trade-off”.

 Valor: O que a Iata faz para atrair jovens que não querem viajar de avião para não prejudicar ainda mais o ambiente?

Juniac: Muita gente fala, mas no momento de colocar dinheiro para compensar as emissões de carbono nas viagens não vemos ninguém. É a divergência entre falar e agir. De outro lado, não constatamos impacto desses movimentos sobre a demanda de passageiros. Talvez isso possa vir a ocorrer, mas até agora não. E a Iata tem um programa ambiental há dez anos, que continuará nos próximos 30 anos, para reduzir enormemente nossas emissões carbono. Não esperamos a Greta Thunberg [ativista ambiental adolescente] para fazer nosso trabalho. Nosso erro foi que não comunicamos suficientemente [as medidas]. A boa notícia é que, quando explicamos, as pessoas se convencem.

 Valor: Vão entrar em operação 2,1 mil novos aparelhos em 2020...

Juniac: Sim. Uma grande questão para 2020 é como a capacidade vai se desenvolver, particularmente quando, como esperado, os aparelhos 737 MAX [da Boeing] voltarão a operar.

 Valor: Resumindo, a indústria do transporte aéreo, em geral, não vai mal.

Juniac: Não, mas somos uma indústria frágil. Temos lucros muito, muito pequenos.

Valor: São US$ 28 bilhões previstos para 2020...

Juniac: Sim, mas sobre um faturamento de US$ 800 bilhões. É cerca de 3,5% de margem. Ao menor choque, ou cinco dólares a mais no preço do combustível... Felizmente, nesse caso, os estoques de petróleo estão altos, assim como sua produção.