Valor Econômico, v. 20, n. 4900, 13/12/2019. Legislação e Tributos, p. E2
 

LGPD e pesquisa clínica
 Pedro Luis Luz Marques Martins


O segmento econômico de pesquisas clínicas pode ser diretamente impactado com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Análise minuciosa sobre os efeitos da Lei nº 13.709/2018, demonstra que, mantida a redação atual, poderá trazer consequências significativas para o desenvolvimento de tratamentos de saúde. Para que se entenda a situação é preciso um olhar sobre a construção da norma e sua intersecção com o regramento existente.

A LGPD dispõe sobre tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoas natural ou jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. A lei visa abarcar todos os setores da atividade econômica que envolvam uso de dados pessoais. Por ser geral, deve-se discutir como se aplica em cada setor econômico, de acordo com as suas particularidades. É isso que torna a legislação ainda mais crítica em áreas como a pesquisa clínica, que se baseia em dados pessoais para o seu correto desenvolvimento. Uma lei que vise proteger dados pessoais não deveria causar impactos neste segmento. Não é o que ocorre com a LGPD.

A pesquisa clínica, assim como outras atividades econômicas reguladas (aquelas cujo Estado, por meio de autarquias, supervisiona e condiciona o seu exercício ao cumprimento de série de requisitos), já apresenta arcabouço regulatório pelo qual os dados pessoais se encontram protegidos - como a Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos ou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 09/2015, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que dispõe sobre o regulamento para a realização de ensaios clínicos com medicamentos no Brasil. Há ainda o Projeto de Lei 7.082/2017, que visa estabelecer parâmetros para desenvolvimento da pesquisa clínica com seres humanos e instituir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos.

A existência de regulação no setor se justifica na medida em que a pesquisa clínica - conjunto de estudos realizados com humanos para medir os parâmetros de segurança e eficácia de novos medicamentos - é essencial para a chegada de novas alternativas terapêuticas no mercado. Além de atrair o interesse econômico daqueles que se beneficiam desses conhecimentos (à título de ilustração, empresas do ramo farmacêutico), é um ramo que afeta diretamente os pacientes participantes.

Assim, os atos normativos citados estabelecem série de requisitos para que uma pesquisa clínica se desenvolva, tais como a obrigatoriedade de que um paciente somente possa ingressar em um processo de pesquisa clínica através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por meio do qual é explicado os detalhes da pesquisa e dá  ciência ao paciente sobre o procedimento ao qual ele pretende se submeter.

Além disso, a regulação também determina que uma pesquisa, antes de ser iniciada, deve passar por um processo de dupla validação, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) de cada centro de pesquisa onde o projeto vai se desenvolver e, nos casos que envolva a utilização de medicamentos, a aprovação da Anvisa.

Nesse sentido, uma lei que vise a proteção de dados pessoais não deveria causar impactos neste segmento. No entanto, não é o que ocorre com a LGPD.

Com a nova legislação, a regra geral é o controle total do indivíduo sobre seus dados. Pode solicitar exclusão em quaisquer hipóteses, salvo algumas exceções, como quando os dados são utilizados para estudo por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais. Por outro lado, órgão de pesquisa, para a LGPD, seria órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos.

Ao excluir da definição de órgão de pesquisa as pessoas jurídicas de direito privado com fins lucrativos, a lei terminou por impedi-las de conduzir pesquisas clínicas, posto que estariam sob o risco de usuários solicitarem a exclusão de suas informações, e a retirada dessas informações inviabilizaria a condução de qualquer pesquisa científica, qualquer que seja o ramo.

Além disso, não se sabe, nesse momento, como a atuação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) afetará o desenvolvimento da pesquisa clínica. No entanto, especula-se que, no início, a ANPD será um órgão enxuto, que apenas solicitará informações da Conep e da Anvisa acerca dos trâmites das pesquisas clínicas, fiscalizando situações com indícios de riscos aos dados pessoais dos pacientes. No entanto, é possível que se crie um terceiro processo de aprovação de estudos clínicos, de forma que, além da aprovação pela Conep (e CEP do respectivo centro de pesquisa), seja necessária também a aprovação da ANPD, o que aumentaria tempo e custo burocráticos.

Essas são indagações, sem pretensões de verdades absolutas, frente à nova legislação que cria obrigações a serem obedecidas por aqueles que realizem operações com dados pessoais e estabelece novo paradigma cultural relacionado a dados pessoais, ao estabelecer a noção de que o manuseio de dados de forma contrária aos desígnios do titular é errado e, agora, passível de fiscalização e punição.

Desse modo, ante cenário inédito, é possível e recomendável construir hipóteses e análises sobre a omissão do texto da pesquisa clínica do setor privado. Porém, ao fim e ao cabo, trata-se de esperar para ver o desenrolar dos fatos, especialmente quanto à correção do texto legal.