Valor Econômico, v.20, n. 4867, 28/10/2019. Legislação & Tributos p.E2

 

Os enunciados de súmula no Carf


Causa preocupação a possibilidade de os enunciados existentes e os que venham a ser editados no futuro sejam usados de forma quase automática


Por José Andrés Lopes da Costa

A recente tentativa de criar “super súmulas” no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), por meio da Portaria nº 531, de 30 de setembro de 2019, que dispunha sobre a presença apenas de representantes de órgãos do governo federal no denominado Comitê de Súmulas da Administração Tributária Federal (Cosat) foi duramente atacada pelo meio jurídico, dando ensejo à sua revogação.

Nada obstante, ainda que a proposta tenha sido rejeitada pela sociedade, necessário se faz analisar de forma crítica o sistema de precedentes administrativos hoje existente naquele órgão, até mesmo porque o Ministério da Fazenda submeterá a matéria à consulta pública antes da edição de nova portaria de conteúdo similar, sendo este o momento oportuno para repensar o assunto e formular propostas para a melhoria do mecanismo ora em vigor.

O sistema hoje existente no Carf apresenta várias virtudes e prevê a edição de enunciados de súmula com o objetivo de consolidar a jurisprudência reiterada do órgão, conferindo-se maior segurança jurídica e previsibilidade ao processo administrativo tributário. Nada mais nobre e totalmente em linha com o movimento de valorização dos precedentes no direito brasileiro, que conta com diversas iniciativas no mesmo sentido, tais como os recursos repetitivos, as súmulas do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) e, também, a súmula vinculante.

Vislumbram-se, contudo, pelo menos duas questões relevantes a serem repensadas no sistema hoje existente no Carf. A primeira reside na necessidade de compatibilizar a aplicação concreta dos enunciados de súmula daquele órgão judicante ao que dispõe o artigo 489 do CPC/2015, que versa sobre os elementos essenciais da sentença, determinando, dentre outros requisitos, que esta não se considera fundamentada quando (a) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; ou (b) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

A razão dessa exigência reside não apenas na necessidade de observar-se o princípio da motivação, mas também para possibilitar a aplicação dos institutos do “overruling “ou “distinguishing”, absolutamente essenciais para o desenvolvimento da jurisprudência e para a administração da justiça. O primeiro possibilita a superação do entendimento anterior sobre a matéria, enquanto o segundo permite a necessária distinção entre determinado caso submetido a julgamento e os demais casos que deram origem a enunciado de súmula para chegar-se a resultado diverso e afastar sua aplicação em uma hipótese concreta.

Dessa forma, causa preocupação a possibilidade de que os enunciados hoje existentes e aqueles que venham a ser editados no futuro sejam utilizados de forma quase automática, em nome da celeridade processual, sem observar o necessário dever de motivação, essencial à validade de qualquer ato administrativo (Lei nº 9.784/98, artigo 2º, VII), impossibilitando, por conseguinte, o conhecimento das verdadeiras razões que levaram àquela decisão, para além da simples existência de enunciado de súmula aparentemente aplicável ao caso.

Outra preocupação relevante reside na inexistência de qualquer previsão legal ou regimental para o denominado “prospective overruling” como mecanismo de proteção à confiança legítima, ou seja, a atribuição de efeitos apenas prospectivos e não retroativos aos novos enunciados que vierem a ser editados para modificar os anteriormente vigentes, sempre que isto ocorra em desfavor do contribuinte.

Cria-se assim a curiosa situação na qual determinado contribuinte celebra negócios e dele extrai determinados efeitos tributários, observando rigorosamente enunciado de súmula do Carf em vigor ao tempo da prática do denominado fato gerador. Apesar disso, com a revogação posterior do enunciado, o contribuinte vem a ser autuado e terá seu caso julgado já sob a égide de outro enunciado que superou o anterior, sem que se leve em consideração que este agiu na mais absoluta boa-fé, seguindo estritamente o que determinava a jurisprudência administrativa da época em que os atos foram realizados.

Em síntese, para além das questões atinentes à paridade entre contribuintes e representantes da Fazenda que estão na gênese da maioria das críticas formuladas à Portaria nº 531/19, é necessário pensar-se de forma crítica no sistema de precedentes hoje existente no Carf para que seja preservado o dever de motivação suficiente e não automatizada para todas as decisões emanadas daquele órgão, possibilitando-se, assim, a necessária distinção (distinguishing) entre casos assemelhados mas não idênticos, que reclamam soluções diferentes. E seja prestigiado o princípio da boa-fé e confiança legítima nos atos administrativos, evitando-se que contribuintes que atuaram em perfeita consonância com a jurisprudência vigente em determinada época venham a ser prejudicados com a superação (overruling) posterior de enunciado de súmula no qual se basearam para tomar decisões.