Título: Os símbolos e a República
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 10/10/2005, País, p. A2
Os romenos dos tempos de Ceausescu contavam que o ditador e seu ministro Ian Maurer passaram uma semana visitando os refeitórios universitários e os refeitórios dos presídios do país. Invariavelmente, Ceausescu mandava diminuir os gastos com a comida dos estudantes e mandava melhorar consideravelmente a ração dos prisioneiros. Ao terminar o périplo, Maurer estranhou o critério de Ceausescu: por que punia os estudantes e premiava os prisioneiros? O ditador respondeu, entre sério e sorridente: "Estudantes nós já fomos, Maurer. Prisioneiros, ainda não". Na verdade, Ceausescu já fora prisioneiro político, e mais de uma vez. Mas o que importa, no episódio, fictício ou não, é a chamada moral da história. No Natal de 1989 não deram a Ceausescu a oportunidade de um devido processo legal: ele e sua mulher foram fuzilados ao fugir. Paulo Maluf está apavorado com as condições de seu alojamento na Polícia Federal - e é sabido que essas condições são bem melhores do que as dos cárceres comuns. Primeiro, sua excelência reclamou das "quentinhas" que, segundo ele, é comida que não oferece aos seus cães. É provável que, traumatizado pela situação, o ex-governador de São Paulo não tenha refletido que dezenas de milhões de brasileiros não têm acesso a uma dieta da qualidade que o Estado fornece aos prisioneiros. Excluindo-se a violência das outras condições impostas aos reclusos, entre elas a mais dura, que é a privação da liberdade, a cadeia oferece a muitas pessoas conforto maior do que conheciam antes, na situação de miséria a que estão condenados milhões de brasileiros.
Agora, aparentemente habituado às "quentinhas", Maluf se apavora com a eventualidade de ter que se tratar em hospital penitenciário. Todos nós gostaríamos de ter o melhor tratamento médico possível, e uma das razões pelas quais houve o crescimento acelerado de São Paulo foi exatamente a qualidade de seus hospitais, em que os pobres podiam contar com boa assistência. Com todos os seus defeitos o governador Adhemar de Barros, com o Hospital de Clínicas de São Paulo, e outros hospitais públicos, lhes assegurara tratamento médico de excelência. Mas as coisas hoje são outras. Se o Hospital de Clínicas continua sendo referência na América Latina, a rede pública se tornou um desastre nacional.
O drama de Maluf não deve servir de alegria a ninguém. De repente, o homem todo poderoso descobre que é igual aos outros, sujeito ao cárcere e aos demais constrangimentos como infrator da lei. Não é situação que possamos desejar nem mesmo para os nossos inimigos. Mas desde que o mundo existe não há outra forma de combater o crime do que puni-lo. E não pode haver distinção entre criminosos, embora a deva haver na graduação da pena, conforme a gravidade do delito. As prisões brasileiras estouram por dentro, e as constantes rebeliões estão exigindo dos especialistas o encontro de soluções rápidas. As circunstâncias estão transformando Paulo Maluf (embora ele nunca tenha manifestado qualquer apreço pelos outros) em porta-voz dos prisioneiros do Estado, que só conseguem ser ouvidos ao matar impiedosamente seus companheiros e usar os cadáveres como bandeiras de reivindicações.
Por onde quer que vá a nossa razão, ela sempre se choca com a evidência da desigualdade social. Paulo Maluf está pagando pelo fato de ter sido um símbolo nacional da impunidade. Durante muito tempo ele administrou essa circunstância com invejável soberba, que dele fazia homem invejado e admirado. Estava acima de tudo. Como a História tem suas astúcias, quem era símbolo da impunidade passou a ser símbolo da impessoalidade e do rigor da lei.
Ninguém deve regozijar-se com o sofrimento de. Paulo Maluf, nem com o sofrimento de qualquer outro ser humano. Mas tampouco ninguém pode contestar que a lei deva ser igual para todos, ricos e pobres, brancos e negros, intelectuais ou analfabetos. Só assim poderemos refundar a nossa República. E o que é melhor em uma "república", conforme Guicciardini, é que nela mandam mais as leis do que os homens.