Título: Depondo as armas
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 10/10/2005, Outras Oipniões, p. A11

Naquele tempo, Jesus estava com os discípulos no Jardim das Oliveiras. Neste momento veio Judas, e com ele uma multidão de gente armada de espadas e pedaços de pau. Pedro, um dos companheiros de Jesus reagiu. Desembainhou a espada e feriu um servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha. Jesus, no entanto, lhe disse: Embainha tua espada, porque todos aqueles que usarem da espada, pela espada morrerão.

A partir daquele momento, ficou selada para sempre, pela boca de Jesus, a lei fundamental da violência: agressão gera agressão, ataque gera ataque, arma gera morte. Armar-se, portanto, não conduz a outro lugar senão à tristeza, ao luto, à mutilação. A vida não passa por armar-se até os dentes para defender-se, mas em desarmar-se e trabalhar para que ninguém nunca mais deva defender-se do outro.

No dia 23 de outubro, os cidadãos brasileiros vão defrontar-se com uma situação parecida à que enfrentou Jesus. Desarmado em meio a uma multidão de gente armada, atacado e agredido, Jesus não permite que seus discípulos tenham o mesmo comportamento que os soldados que vêm prendê-lo. Ao contrário, ordena ao discípulo que se apressa em defendê-lo empunhando a arma que a deponha, pois quem com arma fere, com arma será ferido.

Sentindo-se ameaçados e com medo diante de uma situação de violência e insegurança crescentes, os cidadãos brasileiros hesitam em depor as armas. Temem abrir mão delas e terem suas vidas mais expostas, mais entregues nas mãos de assassinos que os vão expropriar de seus bens e da própria vida. O referendo no dia 23 de outubro é um convite a refletir sobre a verdade da situação do porte de armas em nosso país.

O Brasil é o país do mundo com o maior número de pessoas mortas por armas de fogo. Em 2003, foram 108 mortes por dia, quase 40 mil no ano! A arma de fogo é a primeira causa de morte, sobretudo de homens jovens no Brasil! Mata mais que acidentes de trânsito, Aids ou qualquer outra doença ou causa externa. Além disso, a quantidade de armas atualmente em uso é enorme. Estima-se que o número total de armas em circulação no Brasil seja de 17,5 milhões. Apenas 10% pertencem ao Estado (forças armadas e polícias). O resto, ou seja, 90%, estão em mãos civis.

Ter armas em casa aumenta o risco, não a proteção ou a segurança. As armas domiciliares se voltam contra a própria família. Pais guardam armas para defender suas famílias, mas os próprios filhos acabam por encontrá-las e, muitas vezes, provocam assim trágicos acidentes. No Brasil, duas crianças entre 0 e 14 anos são feridas por tiros acidentais todos os dias.

Além disso, as armas de fogo transformam desavenças banais em tragédias irreversíveis. O conflito que poderia ser resolvido de outra maneira está fadado a ter, quando entra a arma de fogo, desfecho rápido e letal.

É falso considerar também que se está mais protegido. Na maioria dos assaltos, mesmo pessoas treinadas não têm tempo de reagir e sacar sua arma. O assaltante conta com maior destreza, com o fator surpresa e com o nervosismo da vítima. Por isso, quando esta reage, corre mais risco de se ferir ou ser morta.

Uma pesquisa realizada no estado do Rio de Janeiro mostra que a chance de morrer em conseqüência de uma reação armada a roubo é 180 vezes maior do que quando não há reação. E a chance de ficar ferido é 57 vezes maior.

No dia do referendo, portanto, o Brasil tem uma chance única de começar a escrever uma nova história, dizendo SIM à proibição do comércio de armas. Orígenes, cristão do século III, escreveu: ''Quando Jesus, ao ser preso por seus inimigos, mandou Pedro jogar fora sua espada, ordenou a todos os cristãos banirem para sempre quaisquer formas de armas''. Mas mesmo quem não é cristão pode comprovar, por triste e dolorosa experiência, o que saiu da boca do Mestre de Nazaré. A violência é traiçoeira e vingativa, e não demora a voltar-se contra quem dela lançou mão. Dizer SIM no referendo e depor as armas é o único caminho para que a guerra que se instaurou no Brasil comece a entrar em declínio.