Valor Econômico, v.20, n. 4866, 25/10/2019. Política p.A8

 

Supremo consolida tendência para rever segunda instância


Placar a favor de regra atual deve virar quando STF voltar a se reunir


Por Luísa Martins e Isadora Peron 

Com o voto da ministra Rosa Weber pela inconstitucionalidade da prisão após condenação em segunda instância, proferido ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou a expectativa de que a medida de fato será barrada pelo plenário da Corte. Ainda será discutido, porém, o alcance dessa decisão - se a pena só poderá ser cumprida após esgotados todos os recursos ou se prevalecerá uma solução intermediária, em que a execução será permitida após sentença do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Ontem, o julgamento do caso foi suspenso com placar de 4 a 3 a favor da execução antecipada da pena. Contudo, a tendência é a de que haja uma virada. A discussão será retomada nos primeiros dias de novembro, já que na semana que vem o plenário não vai se reunir.

Com os conhecidos votos dos ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello (contrários à prisão antes do trânsito em julgado) e Cármen Lúcia (favorável), a atribuição de desempatar o julgamento recairá sobre o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli.

Ao fim da sessão, questionado se está preparado para dar o voto de minerva, respondeu: “Não sei. Não sei como são os votos dos outros. Não tenho poder premonitório. Eu ainda estou pensando o meu voto. Estou aberto a ouvir todos os debates.”

Em seguida, observou: “Muitas vezes, o voto na presidência não é o mesmo voto [de ministro], pelo menos eu penso assim, em razão da responsabilidade da cadeira presidencial. Não é um voto de bancada, é um voto que também tem o cargo de representação do tribunal como um todo”, disse.

É de Toffoli a tese intermediária segundo a qual o réu poderia aguardar em liberdade até análise de recurso pelo STJ. O ministro, no entanto, não quis fazer prospecções sobre a possibilidade ou não de esse entendimento prevalecer.

A sessão de ontem iniciou justamente com o voto de Rosa, cujo posicionamento era considerado o fiel da balança. Isso porque, em abril do ano passado, a ministra votou contra a concessão de um habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ressalvou que o fazia apenas em respeito à jurisprudência da Corte - que atualmente permite a detenção após sentença de segundo grau.

Contrária à prisão antes do trânsito em julgado, na tese genérica ela deu voz à sua convicção pessoal. “O Constituinte fixou o trânsito em julgado como termo final da presunção de inocência. A interpretação não pode ler esse preceito pela metade”, disse Rosa, em um voto de mais de uma hora e meia.

“Goste-se ou não, esta é a escolha político-civilizatória manifestada pelo poder Constituinte. Não reconhecê-la importa reescrever a Constituição para que ela espelhe o que gostaríamos que dissesse”, completou, acompanhando o relator das ações, ministro Marco Aurélio Mello.

Também seguiu essa linha o ministro Ricardo Lewandowski, para quem a presunção de inocência representa “a mais importante da salvaguardas do cidadão, considerado o congestionadíssimo e disfuncional sistema judiciário brasileiro”.

O ministro disse que não é possível comparar o Brasil com outras nações desenvolvidas que adotam a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. “A realidade delas é completamente distinta da nossa, em virtude das notórias distorções que desde os tempos coloniais caracterizam a persecução penal entre nós: branda com privilegiados e implacável com os desassistidos.”

Lewandowski também fez uma crítica aos colegas que votaram diferente dele - até agora, os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux.

“Afigura-se compreensível que alguns magistrados queiram flexibilizar [a presunção de inocência] por, ingenuamente, acreditarem que é a melhor forma de combater a corrupção. Nem sempre, contudo, emprestam a mesma ênfase a outros problemas igualmente graves, como o inadmissível crescimento da exclusão social”, alfinetou.

Da sessão de ontem, Fux foi o único ministro a se manifestar pela constitucionalidade da execução antecipada da pena. Foi dele o voto mais político da tarde - disse que a prisão após condenação em segunda instância é fundamental o desenvolvimento econômico do país e que reverter essa jurisprudência é “dar as costas ao sentimento da sociedade”.

Fux criticou o fato de o STF revisitar o tema apenas três anos depois de fixar o entendimento que permitiu a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. “A mudança de precedente não pode ser feita sem uma motivação profunda. Essa regra é salutar, evita a impunidade. E agora nós vamos mudar?”, questionou.

Caso a Corte derrube a prisão após segunda instância, a força-tarefa da Operação Lava-Jato prevê que ao menos 38 réus presos sejam beneficiados, entre eles Lula. Porém, se a maioria dos ministros aderir à tese do STJ, o petista não seria solto, pois já foi condenado em terceiro grau.

Na quarta-feira, Marco Aurélio (relator) disse que o princípio da presunção da inocência é claro na Constituição e que a saída intermediária do STJ seria uma “meia sola constitucional”.

 

_______________________________________________________________________________________________________________________

 

Divisão mostra que polêmica tende a continuar


Tema já teve idas e vindas e modulação que pode ser feita por Toffoli é criticada


Por Adriana Aguiar, Beatriz Olivon e Joice Bacelo

 

O voto da ministra Rosa Weber sinaliza que o Supremo Tribunal Federal (STF) poderá mudar de posicionamento e decidir contra a prisão após condenação em segunda instância. Porém, para advogados criminalistas, o placar apertado de seis votos a cinco que se desenha mostra ainda um tribunal dividido.

O tema já teve idas e vindas. Em 2009, a Corte decidiu que a execução da pena estaria condicionada ao trânsito em julgado (quando não cabe mais recurso). Em fevereiro de 2016, a jurisprudência foi modificada pelos ministros, que trataram do tema pelo menos mais três vezes, a última delas no julgamento do habeas corpus (HC) do ex-presidente Lula, em abril de 2018.

“O que ocorre é que não se pode julgar pensando em quem vai se beneficiar ou não no julgamento. O julgamento deve se basear na estrita legalidade”, diz o advogado criminalista David Rechulski, do escritório que leva seu nome. De acordo com ele, “não pode haver mudança no posicionamento porque o julgamento ocorreu em determinado momento da história para que alcance ou deixa de alcançar determinados indivíduos”. “Isso é fazer Justiça sem a venda nos olhos.”

Advogado criminalista e professor da FGV Direito SP, Davi Tangerino, diz que o voto da ministra era um dos mais esperados ontem porque quando o habeas corpus do ex-presidente Lula foi julgado, em abril do ano passado, ela votou pela condenação em segunda instância.

Na sessão de ontem, em que a matéria é tratada pelos ministros por meio de três ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), Rosa Weber votou por mudar a jurisprudência.

Para ela, o início do cumprimento da pena só é possível a partir do trânsito em julgado do processo (quando não há mais chances de recurso).

“Se todos os ministros mantiverem os seus votos da mesma forma do julgamento do HC do ex-presidente Lula, o placar vai inverter", afirma Tangerino. Permaneceriam os seis a cinco, mas contra a prisão em segunda instância.

O voto da ministra Rosa Weber foi coerente com o posicionamento dela no habeas corpus, segundo o jurista e ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp. “Ela foi coerente. Disse que prezava pela decisão da colegialidade em 2016”, afirma. A coerência era esperada, acrescenta Dipp e, ao que tudo indica, com esse voto, haverá a mudança na jurisprudência.

“Só espero que o presidente não venha inventar e propor alternativas para que a condenação seja possível após decisão do STJ”, diz Dipp. Isso, acrescenta, seria uma ação voltada a agradar a opinião pública com medo da repercussão pelo caso Lula. “Se isso ocorrer, será a pior inconstitucionalidade de todas.”

Entre as duas alternativas do julgamento essa seria a única realmente inconstitucional, de acordo com o jurista. Qualquer mudança nesse sentido, afirma, teria que ser feita por emenda constitucional, se o artigo 5º não for interpretado como cláusula pétrea. Nessa situação, só com uma nova constituinte. Para ele, o STF deveria dizer claramente qual é a natureza jurídica da prisão após o segundo grau, se prisão provisória ou definitiva.

A modulação, explica Dipp, não se aplica a princípios fundamentais da Constituição. “Não se modula, não se biparte. Ou o STF tem coragem e ousadia de aplicar a Constituição ou fica refém de uma pretensa opinião pública”, diz o ex-ministro. Por isso, completa, a decisão do julgamento deveria se aplicar a todos os casos.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 4,9 mil presos poderiam ser beneficiados com o fim da prisão em segunda instância. O advogado Davi Tangerino não acredita, no entanto, que a decisão do Supremo - se confirmada a mudança de jurisprudência - tenha efeito imediato a todos eles.

O especialista diz que os juízes, se quiserem, poderão conceder a liberdade de ofício (sem que haja o pedido do réu). Mas pondera ser pouco provável que isso aconteça. "Até porque não há um controle automático, não se apert um botão no teclado do computador e encontra todo mundo que está nessa condição. O mais provável é que cada réu peça ao juiz da execução a sua liberdade, bastando demonstrar que não houve o trânsito em julgado”, afirma.

Davi Tangerino chama a atenção ainda que o juiz, depois de receber o pedido do réu, antes de decidir pela soltura, “certamente vai ouvir o Ministério Público”. “E em vários casos motivos cautelares vão surgir”, diz. “Não há como afirmar que todos serão realmente soltos.”

 

_______________________________________________________________________________________________________________________

 

Bolsonaro evita comentar e Moro defende norma


Militância virtual ataca ministra Rosa Weber e pressiona Cármen Lúcia a pedir vistas


Por Maria Cristina Fernandes, Cristiane Agostine e Carolina Freitas

 

O presidente Jair Bolsonaro evitou comentar a revisão do entendimento sobre prisão em segunda instância, prestes a ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em Pequim, Bolsonaro foi lacônico: “ como chefe do Executivo, não posso ter atrito. Recebi na semana passada três ministros do Supremo, Toffoli, Moraes e Gilmar Mendes. O que conversamos? É reservado. Se divulgar, perco a confiança”., disse.

Em São Paulo, durante o julgamento, o ministro da Justiça, Sergio Moro voltou a defender a manutenção do entendimento do Supremo de que um condenado pela segunda instância da Justiça passe a cumprir pena.

“A execução em segunda instância foi um passo muito importante para enfrentar não só a corrupção mas a criminalidade como um todo”. Ao participar de evento promovido pela revista “The Economist”, o ministro disse que cumprir pena ao final do processo no Brasil é “problemático” porque aqui “o processo penal é lento”. Ex-juiz da Operação Lava-Jato, Moro negou ter cometido excessos. “Não vejo nenhum erro ou excesso na Lava-Jato. Ninguém foi condenado injustamente”, disse Moro.

No mesmo evento, em São Paulo, a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge defendeu a execução penal após a condenação de um réu na segunda instância da Justiça. “Assegurar a prisão após condenação em segunda instância é uma resposta proporcional do sistema de Justiça.”

Nas redes sociais, apoiadores de Bolsonaro e Moro pressionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) e fizeram com que as hashtags “#stfescritoriodocrime” e “#STFVergonhaNacional” ficassem entre as mais populares do Brasil, durante o segundo dia do julgamento sobre a prisão após condenação em segunda instância. A militância alinhada com Bolsonaro e Moro elegeu a ministra Rosa Weber como principal alvo no Twitter.

A ministra votou contra a prisão após condenação em segunda instância. O voto de Rosa Weber era o mais esperado do dia, porque pode ser decisivo para o resultado final. A decisão do STF pode beneficiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril de 2018 em Curitiba, o que explica a ira bolsonarista.

O julgamento foi suspenso ontem, com um placar de quatro votos a favor da prisão em segunda instância (Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux) e três votos contra (Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski), e deve ser retomado em novembro. Faltam votar Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli.

Grupos anti-PT passaram a pressionar Cármen Lúcia a pedir vistas. O “Vem Pra Rua” divulgou o e-mail e telefone do gabinete da ministra. “Nojo do STF”, disse o grupo. “STF está zombando da cara de cada brasileiro”. Representante do Movimento Brasil Livre, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) disse que o voto de Rosa era essencial para manter a prisão em 2ª instância.

O líder do PSL no Senado, Major Olímpio (SP), afirmou que o Brasil caminha para ser o “país da impunidade”. “O sonho dourado de qualquer gangster criminoso pelo mundo é viver no Brasil! Vai cair a possibilidade da prisão após a 2ª instância no STF, dando garantia para milhares de criminosos. Lula, estupradores, ladrão de banco, traficantes que poderão ganhar as ruas já. Viva a impunidade do Brasil”, disse, no Twitter.

Os aliados do ex-presidente Lula preferiram manter a discrição nas redes sociais. Um dos poucos líderes de partidos de centro-esquerda a comentar o segundo dia do julgamento, o ex-juiz e governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), disse que o Supremo deve respeitar a Constituição, que determina que a prisão só pode acontecer depois de esgotados os recursos. “Interpretar a Constituição é um dever dos juízes. Mas isso não permite que seu texto seja ignorado e substituído por outro”, afirmou Dino no Twitter. “Todas as pessoas podem ser presas, a qualquer momento, no curso de um processo judicial, se presentes os requisitos legais para prisão preventiva. O que não existe na Constituição e no CPP é prisão obrigatória antes do trânsito em julgado. É isso que está em julgamento no Supremo.” (colaborou Flavia Furlan, de São Paulo)