Título: Corrupção aqui, horror acolá!
Autor: Raquel Stivelman
Fonte: Jornal do Brasil, 10/10/2005, Outras Oipniões, p. A11
Quando algum mal nos atinge, quer individual ou coletivamente, existe a tendência de nos considerarmos os maiores sofredores do mundo, os mais atingidos, os piores alvos do desacerto e da injustiça.
Infelizmente, o ser humano tem raramente dirigido o foco de sua atenção mais para fora do seu âmbito particular e o altruísmo, a importância e a relevância do outro são relegados a segundo plano e muitas vezes a plano nenhum. Uma contrapartida a este ponto de vista estaria refletida no dito popular ''pimenta nos olhos dos outros é refresco'', implicando, com uma certa razão de ser, que os outros não podem aquilatar o verdadeiro sofrimento que a nós é infligido, e que todos nós tendemos a minorar, a diminuir a importância da intensidade de sofrimento alheio. Todas estas considerações foram despertadas pela releitura de um livro muito recentemente publicado em português. O caçador de pipas, cujo original é The kite runner, a primeira obra do autor afegão Khaled Hosseini, um médico residente em San José, Califórnia. No começo deste ano, adquiri o livro em inglês, porque se tratava de um best-seller recém-publicado nos Estados Unidos e que estava em primeiro lugar nas vendas de todo o país. Creio que do ponto de vista literário haja livros muito superiores a ele, aliás, cuja tradução feita por Maria Helena Rouanet está excelente. Mas sob o ponto de vista da emoção, da contundência das paixões humanas, das incongruências entre o amor e o que se faz dele, da complexa e delicada relação entre pais e filhos, entre a amizade e a traição, entre o sentimento de culpa e de sua remissão, o livro é raro. Ao lê-lo pela primeira vez no seu original, senti o meu coração apertado e muitas lágrimas rolaram pela minha face durante a leitura, o que se repetiu quando seis ou sete meses depois fui relê-lo em português, minha língua natal, aquela que mais diretamente flui do meu coração. As lágrimas foram ainda mais intensas e o aperto no coração mais doído. No longínquo e desconhecido Afeganistão, um mundo tão apartado e diferente do nosso, quanta miséria e injustiças são cometidas! Daí a razão de ser da inspiração deste artigo. Nós, brasileiros conscientes e atentos, nos envergonhamos e deploramos a situação escandalosa que estamos agora vivenciando e povos, geograficamente distantes de nós, mal sobrevivem à loucura assassina de governantes fanáticos, cruéis e ensandecidos. É bem verdade que guerras injustas e matanças de inocentes têm ocorrido sempre no decurso da história. Mas foi a leitura deste livro extraordinário que focalizou a minha atenção sobre um país que só se tornou mais conhecido pela mídia quando o famigerado Bin Laden para lá se refugiou; desafiando a pretensa e hoje já atingida onipotência americana.
Aqui, na China, na Mongólia e no Afeganistão, onde quer que seja, em qualquer rincão do mundo, as paixões humanas afloram, os pecados não expiados ocasionam remorsos e sofrimento, as fricções e os atritos ocorrem, as discriminações se manifestam, os homens sofrem e fazem sofrer e exercem o poder, uns sobre os outros. É este o destino humano sobre toda a face da terra. No Afeganistão, os pashtuns se consideravam os donos da terra e os hazaras, a casta dos desprezados, dos inferiores. O autor enfoca com muita precisão os embates do amor e ódio entre dois mesmos representantes destas duas castas sociais e sobretudo destaca a nobreza d'alma, a fidelidade, a pureza do membro da classe inferior.
Os russos tomaram o Afeganistão e os costumeiros horrores e as vergonhas da guerra se repetiram. O instinto de sobrevivência impele os homens a se refugiarem em outros países onde existam condições de vida. Assim, Amir, personagem central do livro e o seu pai, a vigorosa figura do Baba, tão influente em sua vida partiram para os Estados Unidos. Aliás, creio que existam vários componentes auto-biográficos em muitas passagens do livro e a imigração para os Estados Unidos foi uma delas. No verão de 1988, os soviéticos se retiraram do Afeganistão e o Talibã, a ala mais extremada do fundamentalismo, assumiu o poder e no comentário do personagem Rahin Khan, os seus representantes não permitiam que o ser humano pudesse exercer a sua humanidade. Toda e qualquer manifestação natural das pessoas era vigiada, patrulhada e punida com golpes violentos. Quando a Aliança do Norte assumiu o controle de Cabul, a capital do Afeganistão entre 1992 e 1996, as diversas facções reivindicaram diferentes áreas da cidade. Precisava-se de um visto para ir de um bairro a outro. As pessoas foram abrindo buracos nas paredes de suas casas para evitar as ruas tão perigosas e poder circular pelo quarteirão passando de buraco a buraco. Quando o Talibã chegou, foram saudados como heróis, mas com um preço alto demais. As diversões mais inocentes como as competições de pipas foram proibidas e os hazaras massacrados. A bondade abandonou a terra dos afegãos. As ruas estavam cheias de órfãos famintos. Escombros e mendigos, por toda a parte. Uma infinidade de mãos imundas, estendidas implorando por esmolas. Na sua maioria estes pedintes eram crianças pequenas, de cinco a seis anos de idade.
Quarteirões inteiros de Cabul viraram montes de escombros. A patrulha armada do Talibã estava por toda a parte. Orfanatos onde o diretor vendia uma menina de vez em quando para depravados para poder ter dinheiro para alimentar os demais. Dinheiro imundo para salvar crianças. Lugar onde pernas mecânicas eram negociadas para alimentar a família dos aleijados.