O Globo, n. 32638, 16/12/2022. Mundo, p. 16

'Não nos preocupamos com ideologia'

Entrevista: Mauro Vieira


Em sua primeira entrevista exclusiva desde que foi anunciado para o comando do Itamaraty pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, há seis dias, o veterano embaixador Mauro Vieira prometeu que o Brasil vai "voltar a todo mundo", retomando o diálogo com todas as nações, independentemente do posicionamento político ou ideológico dos seus governos.

A promessa marca uma mudança em relação à política externa do governo de Jair Bolsonaro, que seguiu uma política de alinhamento incondicional com os Estados Unidos de Donald Trump, deu preferência a parcerias com países governados pela direita, como Hungria e Polônia, e travou embates com governos de esquerda e centro-esquerda na América do Sul, como o do argentino Alberto Fernández, peronista.

— Não nos preocupamos com a ideologia. A ideologia é a integração — disse Vieira sobre a relação com os países vizinhos.

O diplomata de 71 anos, que já foi chanceler no segundo governo de Dilma Rousseff e embaixador em Washington e Buenos Aires, acredita que a relação com os Estados Unidos entrará em uma "nova era" e que será possível destravar acordos comerciais como o firmado com a União Europeia. Ele também indicou que, mantendo uma política seguida sob Bolsonaro, o Brasil não vai aderir às sanções contra a Rússia adotadas pelos EUA e a União Europeia por causa da invasão da Ucrânia.

— Nós não adotamos sanções que não forem aprovadas pelo Conselho de Segurança. Senão são ilegais. Não adotamos nenhuma.

Apesar de afirmar que não haverá uma “caça às bruxas” no Itamaraty, Vieira — que no atual governo foi alocado na Croácia, um posto considerado de segunda linha — prevê mudanças:

—Posições importantes ocupadas por pessoas que têm uma posição diferente têm de mudar, se adaptar às realidades. Inclusive por questão de foro íntimo, quem pensar de um jeito ter que agir de outro jeito, acho que essas mesmas pessoas vão pedir para sair.

Abaixo, a íntegra da entrevista.

O governo Lula foi marcado por iniciativas como a criação do Brics e do G20 comercial. Qual pode ser a marca da política externa do próximo mandato de Lula?

Do ponto de vista da política externa brasileira, a grande marca vai ser continuar com as políticas de integração sul-americana, de aproximação, é um preceito constitucional, inclusive. Vamos continuar e aprofundar. Da mesma forma que a aproximação com a América Latina como um todo. As relações com os blocos e países desenvolvidos, os grandes parceiros do Brasil, Estados Unidos, União Europeia e China. Na área multilateral, vamos reforçar o multilateralismo, que também é uma marca patente da política externa brasileira, e recuperar a imagem do Brasil, trazer o Brasil de volta aos grandes foros internacionais. O Brasil se ausentou muito nestes últimos anos, então precisamos trazer de volta e ter uma posição mais ativa, de forma que o Brasil tenha uma voz escutada e desejada. Existe uma sede de ver o Brasil de novo atuando.

O governo Bolsonaro foi muito questionado por não ter criticado veementemente a postura russa na invasão da Ucrânia, o que de certa forma coincide com a visão do presidente eleito. Isso vai mudar?

O Brasil criticou e condenou a invasão, a conquista territorial. Isso [a invasão] evidentemente é contrário à carta da ONU, foi condenado e será. A Constituição diz que nós temos que valorizar e procurar uma solução pacífica para os conflitos, e vi o presidente Lula dizer que, chegando o momento, é preciso sentar, conversar e buscar uma solução pacífica negociada. É o que vai ser feito, o que vai acontecer.

O Brasil poderia adotar sanções contra a Rússia?

Não, nós não adotamos sanções que não forem aprovadas pelo Conselho de Segurança. Senão são ilegais. Não adotamos nenhuma.

Numa eventual negociação, o Brasil defenderia que a Rússia devolva à Ucrânia os territórios anexados recentemente?

Não se pode partir de nenhum princípio pré-estabelecido. Ou dizer, só sento [para negociar] se for assim. O que o Brasil pode fazer, pode juntar sua voz à de outros países, é estimular uma negociação. Tem que sentar e conversar. O presidente Lula é especialista na arte da negociação, de conversar.

O Brasil hoje não fala com Nicarágua, Cuba, Venezuela. A diplomacia brasileira voltará a conversar com todo mundo?

O Brasil volta a todo mundo. Somos um país presente no mundo todo, que tem relações diplomáticas com todos os países da ONU, um dos pouquíssimos que tem relações com todos os países. Achamos que se deve justamente escutar e ouvir, a diversidade tem de ser aceita. Vamos reativar as relações diplomáticas com Venezuela, vamos normalizar as relações com Cuba e mantemos relações com a Nicarágua e com outros países centro-americanos e caribenhos.

Sem condenações?

Temos de ver em cada país, as coisas mudaram. O mundo evolui, não é mais o mesmo, temos de examinar e ver quais são as circunstâncias. Mas simplesmente virar as costas e não falar é contra o próprio conceito de diplomacia.

Relatórios da ONU confirmam torturas e violações dos direitos humanos na Venezuela. Isso pode levar a mudanças nas relações bilaterais nessa retomada?

Nós nem sabemos o que está acontecendo porque não temos mais ninguém lá, abandonamos há três anos. Recebemos notícias de segunda e terceira mão. Por isso é importante ter gente lá para ouvir e relatar, vamos examinar e vamos ver. Existem preceitos constitucionais que temos de seguir na política externa, veremos.

Outra mudança de cenário é a polarização entre China e EUA. Como o Brasil vai se posicionar?

Há uma polarização, sem dúvida. Mas, desde que restabelecemos relações com a China, nunca deixamos de ter uma embaixada importante. A China é há mais de dez anos o primeiro parceiro comercial do Brasil. Os EUA são o segundo, importantíssimo. E é o maior estoque de investimento no Brasil. O Brasil tem condições de falar e de ter interesses específicos com cada país, e defender seus interesses nacionais com cada país.

O que podemos esperar das visitas do presidente Lula à China e aos EUA?

Não temos um roteiro completo, mas o presidente tinha sido convidado pelo presidente Joe Biden para ir aos EUA. Não pôde ir como presidente eleito, não houve tempo, mas fará isso em algum momento de janeiro ou fevereiro. Também existe um convite para uma visita de Estado à China e existe uma intenção do governo chinês de que seja logo. É ótimo início deste terceiro mandato que ele comece vendo os dois maiores parceiros comerciais do Brasil, e as duas maiores potências. Já tivemos tantas visitas de Estado aos EUA, mas será o início de uma nova era. Será um relacionamento diferente.

A relação será normalizada?

Sim, vamos normalizar a relação, ter o diálogo que sempre tivemos, aberto, transparente, mas ao mesmo tempo defendendo os interesses nacionais em tudo o que for necessário. Da mesma forma com a China. Temos parcerias enormes, a China é membro do Brics junto com o Brasil. Apesar de ser uma potência econômica enorme, ainda, em certos aspectos, é um país em desenvolvimento e que tem muitas coisas em comum com o Brasil.

A primeira viagem internacional será a Buenos Aires, para a cúpula Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) no final de janeiro?

Sim, o presidente irá para a cúpula da Celac e fará uma visita bilateral. Não sei se será a primeira, depende da agenda.

O presidente eleito irá ao Fórum Econômico de Davos?

Não sei, ele [Lula] está examinando o convite. São muitas viagens.

O senhor vai mudar embaixadores em postos estratégicos?

Já existe uma lista, não é segredo.

Mas essa é a lista do ministro Carlos França…

Sim, mas agora é diferente. Algumas das mensagens que tinham ido para o Senado foram retidas, estão guardadas esperando. Todos os postos são de decisão pessoal do presidente, está na Constituição. Evidentemente que haverá mudanças. Quem vai pra onde, não posso dizer ainda.

A ex-presidente Dilma Rousseff será embaixadora?

Não sei, só vi isso na imprensa. De qualquer forma, não podemos dizer. Primeiro deve ser pedido o agrément [concordância do país de destino] e depois tem de esperar que país conceda o agrément porque senão é uma confusão e se estaria violentando a Convenção de Viena sobre relações diplomáticas.

Chile e Colômbia estão sem embaixador no Brasil. O Chile propôs Sebastián Depolo, muito próximo do presidente Gabriel Boric, mas seu agrément não foi aceito pelo governo Bolsonaro. O governo Lula o concederá?

Um emissário de um chefe de Estado vizinho que tem um nome submetido não vejo por que não seria concedido.

O Itamaraty com Bolsonaro foi marcado por críticas, ideologização interna, como pacificar e voltar à normalidade?

O Itamaraty é uma instituição de Estado, com carreira de Estado. Os funcionários todos devem sempre se comportar dentro desses parâmetros. É evidente que cada um pode ter posições e preferências políticas, mas tem que atuar de uma forma republicana. Isso é uma obrigação, e assim espero que seja.

Pode haver algum tipo de caça às bruxas contra pessoas ligadas ao atual governo?

Não, caça às bruxas, acho horrível, e não vejo pressão. Não tem por que haver, o que tem que haver é uma adaptação. Mudanças, sim, em posições importantes ocupadas por pessoas que têm uma posição diferente. Aí tem de mudar, se adaptar às realidades. Inclusive por questão de foro íntimo, quem pensar de um jeito ter que agir de outro jeito, acho que essas mesmas pessoas vão pedir para sair.

Haverá uma busca maior por diversidade?

Sempre procurei e estou aberto a ouvir todas as propostas. Nunca fui contrário à inclusão, à diversidade, se fosse não teria convidado a Maria Laura [Rocha, nomeada secretária geral do Itamaraty].

Como será a relação com os governos de direita da região?

Vai ser uma relação com parceiros importantíssimos, vizinhos e membros do Mercosul, com fronteiras gigantescas e delicadas, que têm de ser preservadas, vai ser uma relação absolutamente normal. São políticas de Estado. Cada população, cada país elege o governo que quiser e preferir. A relação com os Estados será para desenvolver e aprofundar a integração regional, e manter um diálogo de qualidade, de Estado para Estado.

No caso do Peru, existe um movimento de alguns governos para pedir a libertação do ex-presidente Pedro Castillo, que tentou dar um golpe de Estado. O Brasil de Lula se uniria a esse pedido de liberação?

O presidente emitiu uma nota em que está muito clara a posição. Tudo o que for feito de acordo com a legislação interna, respeitando a legislação e os direitos humanos, nós não temos razão para discordar ou concordar. É uma aplicação da legislação. Inclusive a nota do presidente Lula foi anterior à nota do governo brasileiro, e acho que ali está claro. Não há mais nada que dizer ou interpretar.

Existem críticas de que os governos do PT quase não fizeram acordos comerciais. O governo Lula estará disposto a correr atrás desses acordos?

É uma crítica equivocada. Foram negociados muitos acordos, alguns não foram concluídos, mas não por conta do governo ou por questão ideológica. União Europeia e Mercosul, por exemplo, trabalhei intensamente na negociação desse acordo, com o apoio do MDIC [Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, extinto no governo Bolsonaro], com o então ministro Armando Monteiro. Trabalhamos, viajamos, estivemos em reuniões em todos os países do Mercosul fazendo uma proposta comum. Enfim, não avançou por uma série de questões. Apresentamos as propostas, o governo acabou, foi interrompido [com o impeachment de Dilma Rousseff]. E, depois, a União Europeia, que é a outra parte, também tem seus tempos, as suas dificuldades internas. O governo que assumirá em janeiro é outro, em relação ao meio ambiente, indicando que haverá mais recursos humanos e financeiros para fiscalizar e exigir certificados de procedência de produtos.

O acordo será reaberto?

O acordo vai ser retomado. Evidentemente, vamos estudar internamente. Uma das primeiras coisas que vou fazer, nos primeiros dias de governo, será falar com os nossos sócios, os três do Mercosul, para então nos aproximarmos da União Europeia, que é um corpo enorme, com 27 membros. Ninguém pode esperar que em um mês esteja tudo resolvido.

Alguns europeus defendem a colocação de um adendo ambiental, e afirmam ter a sensação de que o Brasil talvez queira reabrir as discussões econômicas. Mas, se fossem reabertas para atrapalhar o texto antigo, talvez fosse melhor recomeçar do zero...

Eu acho que vai haver mais espaço de negociação, de conversa, porque a posição do Brasil em temas fundamentais, como é a questão do meio ambiente, mudou 100%, mudou 180 graus. Isso move um pouquinho algumas barreiras, má- vontade e dificuldades.

A União Europeia já está aprovando a proibição de importar produtos que sejam oriundos de áreas desmatadas. O Reino Unido deve fazer o mesmo, enquanto China e EUA são pressionados a tomar medidas mais rígidas no comércio, em defesa do meio ambiente. Há preocupação em relação a isso?

Temos legislações boas e de qualidade, e precisamos respeitá-las e cumpri-las. Também é preciso um sistema de fiscalização que esteja funcionando, com recursos financeiros e humanos, além da exigência de certificado de procedência.

O fato de quase todos os países amazônicos, com exceção do Equador, terem hoje governos de esquerda facilita uma atuação conjunta para a preservação da Amazônia?

Não, isso é uma bobagem. Não nos preocupamos com a ideologia. A ideologia é a integração, as necessidades dos países e o bem-estar dos povos. Se possível, Lula quer uma reunião da Cúpula dos Países da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica ainda no primeiro trimestre. Mas ainda não estabelecemos data. O presidente Lula quer é ter uma política comum, decidida no mais alto nível, que possa preservar a Amazônia, mas também produza frutos para as populações.

Menos de duas horas depois da eleição de Lula, praticamente todos os países relevantes já tinham felicitado o presidente eleito. É esperado um número recorde de chefes de Estado na posse, em 1º de janeiro. Não está sendo gerada uma expectativa muito grande?

São expectativas muito boas, de que o Brasil é um país grande, respeitado, apreciado, e os parceiros do mundo inteiro querem voltar ao Brasil, serem bem tratados, bem recebidos, para conversar, independentemente de ideologia. Pode vir quem quiser conversar e dizer o que quer fazer.

Quanto à União de Nações Sul-Americanas (Unasul), criada nos primeiros governos Lula, a ideia é retomar o que já existia ou criar algo novo?

A Unasul é o ponto de partida. Temos que examinar essa questão, pois nos afastamos da Unasul [no governo Bolsonaro] de forma totalmente ilegal. Não houve decreto ou portaria dizendo que íamos sair, não passou pelo Congresso. Então está fácil voltar, é só revogar a medida.

A dívida do Brasil com os organismos internacionais atrapalha?

Essa é uma questão seríssima, porque o Brasil está no Conselho de Segurança das Nações Unidas este ano e ano que vem. Espero que até o dia 31 de dezembro o governo atual pague, pelo menos, o necessário para não perdermos o direito ao voto, senão teremos que pagar muito rapidamente no início de 2023. O valor devido é alto, à Organização Mundial da Saúde, à Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outros. Não podemos nos dar ao luxo de não estar presentes ou perder votos.

E como serão as relações com o Oriente Médio, as relações com Israel e os países árabes?

A posição do presidente Lula, é muito clara: os dois Estados, Israel e Palestina, devem conviver em paz, lado a lado, com respeito mútuo. O presidente Lula vai evidentemente viajar a alguns países da região. Nós reconhecemos a Palestina como Estado e, evidentemente, vamos voltar a defender. E não haverá mudança da embaixada para Jerusalém [como defendeu Bolsonaro, sem chegar a implementar]. Haverá uma relação de cooperação com os países árabes, com a Palestina, sobretudo. Há uma grande proporção da comunidade palestina na sociedade brasileira, sem contar a árabe em geral, como a sírio-libanesa.

E quanto à África, o governo Lula pretende reaproximar o Brasil da região?

Foi um dos eixos que o presidente me recomendou, além dos que já citei. Ele me disse que queria ter uma relação importante, de qualidade e solidária com os países africanos. Quando fui ministro do governo da presidenta Dilma, viajei muito, fui a 16 países africanos. E o presidente Lula também visitou muitos países africanos. Ele viajará aos países africanos com a intenção de promover programas de integração e de cooperação. Temos uma ligação umbilical com a costa atlântica da África, e não podemos negar isso. Vamos valorizar.

Está se retomando a política Sul-Sul?

Sim, porque é muito importante, sem que para isso seja necessário dispensar qualquer outro eixo político, como EUA, União Europeia e os países vizinhos.

Coreia do Norte também?

Sim. Nós temos embaixada lá, e são poucos os países que têm. Às vezes nos criticam porque temos embaixada lá, mas precisamos de canais para conversar.

Sobre a Organização dos Estados Americanos (OEA), existem alguns governos da região, como o do México, que questionam a gestão de Luis Almagro na Secretaria Geral. A OEA perdeu relevância e capacidade de articulação. Haverá uma postura mais crítica do governo Lula quanto à organização?

É uma questão também a ser examinada e avaliada. Acho que a OEA precisa de uma atualização, de uma certa modernização, porque perdeu, sem dúvida nenhuma, um pouco da sua importância, da sua influência e da sua presença. Mas o multilateralismo é assim, você tem que constantemente evoluir e se adaptar aos novos tempos.