Valor Econômico, n. 4922, 18/01/2020. Opinião, p. A12

Sandbox regulatório: oportunidades e cuidados
Vinicius Marques de Carvalho


O Banco Central (BC) abriu no final de novembro uma consulta pública a respeito do uso do chamado sandbox regulatório no setor financeiro e no mercado de meios de pagamento. A ideia da consulta é propor um ato normativo que regulamentará a entrada de agentes de mercado nesse sistema, bem como das regras sobre oferecimento dos bens e serviços.

Esse movimento do Banco Central segue uma tendência internacional, já que o conceito de sandbox regulatório se espraiou de forma significativa nos últimos anos e se consolidou no debate público. Em especial em decorrência de iniciativas no Reino Unido, que em 2016 habilitou a primeira leva de empresas a operar dessa forma, a ideia de criação de um ambiente regulatório experimental e temporário para negócios inovadores ganhou tração. No Brasil, com a Lei de Liberdade Econômica, a iniciativa se fortaleceu e ganhou maior respaldo legal. A premissa é que a regulação, em particular em alguns mercados, é custosa e impõe barreiras à entrada de novos agentes. Ela foi desenhada tendo em vista modelos de negócio que, por conta do desenvolvimento tecnológico, estão sendo desafiados/questionados.

Para permitir a disrupção - e seu subsequente benefício para o mercado e para os consumidores - estabelecer esse espaço de testes, em que as exigências regulatórias seriam flexibilizadas, teria potencial benéfico para a economia, seja porque permitiria o surgimento de novos produtos e serviços, seja porque intensificaria a competição, ao desafiar os incumbentes e assim forçar investimentos em tecnologia e criação de eficiências em geral, seja ainda porque permitiria ao Estado ajustar a carga regulatória de forma a endereçar as falhas de mercado efetivamente presentes em decorrência dessas inovações, que podem ser diversas das que existiam anteriormente. Um caso que, apesar de não ter passado pelo sandbox, claramente poderia se beneficiar da existência do mecanismo, é o dos aplicativos de transporte individual de passageiros. O principal argumento então utilizado pelos incumbentes contra os entrantes era a nebulosidade regulatória. Se um sandbox estivesse em vigor, os aplicativos poderiam operar sem esse risco, e possivelmente trazer benefícios ainda maiores aos clientes e à sociedade.

É inegável que a implantação de um sistema como esse apresenta grandes oportunidades. Mas a empolgação com o tema tem feito com que alguns aspectos relevantes do debate sejam deixados de lado, o que por sua vez põe em risco a própria razão de ser dessa ferramenta. Em particular, cabe destacar os possíveis riscos para a concorrência, já que a sua promoção é um objetivo expresso listado na consulta do Banco Central.

Não obstante o sandbox seja uma proposta louvável, não é de hoje que o debate sobre incentivo à inovação e dificuldade de entrada em mercados regulados se apresenta. A novidade é a escala em que esse tipo de situação passou a se apresentar, em grande medida decorrente do desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, o desenho do regulamento de sandbox e especialmente dos gatilhos de entrada dos agentes é crucial para o desenvolvimento do mercado. No caso da proposta do Banco Central, por exemplo, há um processo de habilitação e a previsão de um possível número máximo de empresas que poderá estar sujeito ao sandbox. Ou seja, caberá à autoridade uma avaliação sobre o “projeto inovador” submetido, para que ele se classifique ou não entre os escolhidos. No caso de limitação do número de participantes, há também uma necessidade de seleção dos melhores projetos.

Usando o próprio exemplo do mercado de serviços financeiros, em que já se registrou a existência de número extremamente significativo de fintechs - mais de 500 empresas, segundo o Fintech Mining Report de 2019, um problema concreto que tem potencial de se apresentar é o ônus da Administração Pública em avaliar número tão grande de propostas. Para além do risco de erro nessa avaliação, que pode gerar distorções severas no mercado, há uma questão aparentemente trivial, mas central no contexto brasileiro de redução de custos da máquina pública: o custo que a implementação de um sistema como esse trará ao Estado. No Reino Unido, a Information Commission Office (ICO), autoridade nacional de proteção de dados, anunciou que a implementação de sua proposta de sandbox terá custo maior que mais de metade de suas principais investigações no ano de 2019.

Outro desafio é pensar em padrões do sandbox que funcionem e sejam razoáveis para todos os atores, tanto os que participarão dessa iniciativa quanto os que ficarão de fora dela. Nesse contexto, um risco que se deve a todo custo evitar é o de que esse ferramental gere desincentivo para que os agentes incumbentes inovem, já que esse resultado seria altamente indesejado para a sociedade como um todo. Além disso, é preciso ter em mente a enorme variedade de agentes inovadores que poderiam se enquadrar no sandbox, e sua heterogeneidade. Há empresas de diferentes portes, com distintas capacidades financeiras, inclusive diferentes capacidades de comunicar-se de forma efetiva com os reguladores. É essencial que essas peculiaridades sejam levadas em consideração, para que nem seja conferida uma vantagem competitiva exacerbada a uma empresa - o que poderia constituir arbitragem regulatória, vedada expressamente pela recém-editada Lei de Liberdade Econômica - nem seja uma empresa impedida de usufruir da flexibilização regulatória de forma injustificada.

Ressalte-se novamente: nada disso tira o mérito do sandbox, nem retira da ferramenta seu potencial positivo. O que sim ocorre é que inserimos mais uma variável na discussão, que deve ser avaliada pelas autoridades quando do desenho de normativas. Tudo leva a crer que o Banco Central está atento para esse cenário e preocupado com o desenho de um modelo eficiente e efetivo, tanto que disponibilizou sua proposta regulatória para a sociedade, submetendo-a ao escrutínio público. Não custa, porém, ressaltar a importância desse tipo de reflexão, e o impacto que seu desenho pouco cuidadoso representa para o mercado.