Valor Econômico, v. 20, n. 4903, 18/12/2019. Opinião, p. A17
Reforma tributária e desigualdade
Katia Maia
Oded Grajew
O governo insiste na necessidade de retomada econômica e ampliação do espaço fiscal via reformas que reduzam os gastos sociais e de investimento. “Para superar a crise econômica o Brasil precisa de reformas que reduzam as despesas públicas”, dizem governo, analistas econômicos e instituições multilaterais, em um discurso limitado e enviesado. A crise fiscal é reduzida a um problema de controle de gastos públicos, sem reconhecer a importância deles e seu impacto social, num país em que a pobreza, a miséria e as desigualdades estão aumentando.
Nessa busca, o atual governo chega até mesmo a propor na PEC do Pacto Federativo, que faz parte do pacote Plano Mais Brasil, alterações na Constituição que ameaçam direitos sociais, como saúde e educação, e os condiciona a questões econômicas.
Entretanto, a insistência na execução de políticas de austeridade fiscal não tem produzido sequer os efeitos econômicos esperados. A teoria tão difundida de que cortar gastos sociais e de investimento é condição necessária para a retomada econômica tem se mostrado insuficiente. A economia brasileira segue patinando e as medidas tomadas até o momento, desde a Emenda Constitucional do Tetos dos Gastos de 2016 e outras regras fiscais, passando pela reforma trabalhista e pelas reformas e ações do governo atual, seguem impactando negativamente a maioria da população, sem promover o tão esperando crescimento econômico virtuoso.
Está na hora de parar de pôr a conta no colo dos mais pobres e da classe média e atacar o problema de frente: nosso sistema tributário é demasiadamente regressivo, injusto e ineficiente. Tudo que for feito no país para resolver a crise fiscal sem reformar esse sistema será inócuo.
Em quase um ano de gestão, o atual governo segue em fase de formulação da sua proposta de reforma tributária. Já existem três delas em tramitação no Congresso Nacional. Uma no Senado (PEC 110/2019), uma na Câmara (PEC 45/2019) e uma emenda a essa, da liderança da minoria. A falta de prioridade do governo com essa pauta essencial atrasa a possibilidade de um debate unificado e resolutivo, o que alimenta privilégios e não reduz desigualdades.
Está na hora de parar de pôr a conta no colo dos mais pobres e da classe média e atacar o problema de frente: o sistema tributário é demasiadamente regressivo, injusto e ineficiente. Tudo que for feito para resolver a crise fiscal sem reformar esse sistema será inócuo.
A média de contribuição com impostos realizada pela população brasileira adulta com renda é de 19%. Porém, as pessoas que estão no grupo dos 5% com menor renda (entre R$ 265 e R$ 570 mensais) contribuem proporcionalmente mais com o pagamento de impostos, em média com 28% de sua renda. Por outro lado, as pessoas no 0,2% de renda mais alta do país (renda média de R$ 175 mil) contribuem com apenas 7% de sua renda.
Essas discrepâncias são fruto da alta dependência dos tributos sobre o consumo, que representam mais de 50% da carga tributária, e da grande diferenciação da tributação entre as rendas do trabalho e do capital. Esses dois mecanismos fazem com que o sistema brasileiro seja regressivo e pese proporcionalmente mais sobre as pessoas de menor renda.
Essa regressividade é um dos fatores responsáveis pelo lamentável lugar que o Brasil ocupa como um dos países mais desiguais do mundo. Cabe destacar que a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE), clube do qual o Brasil pretende ser membro efetivo, mostra que é nas nações com redução das desigualdades que surge um crescimento econômico mais rápido e sustentado.
Assim, qualquer proposta de reforma tributária que não seja guiada por esse propósito é insuficiente para uma retomada econômica mais estável e a ampliação do espaço fiscal. Com essa perspectiva, a Oxfam Brasil apresenta cinco propostas que pretendem contribuir ao debate atual, que são considerados pontos essenciais para uma reforma que promova eficiência e equidade.
A primeira proposta trata da simplificação e ganho de eficiência na tributação sobre consumo, com a substituição dos diversos impostos atuais por um Imposto de Valor Agregado (IVA). A segunda é a ampliação da progressividade do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) a partir da volta do tributo sobre lucros e e dividendos, revisão da isenção dada à renda obtida com aplicações financeiras e ampliação das faixas e alíquotas da cobrança do imposto de renda para alcançar as faixas de alta renda e reduzir as que recaem sobre as de menor renda.
Outra mudança a ser considerada é o aumento da progressividade do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), para que grandes corporações multinacionais não paguem menos tributos que as médias e pequenas empresas nacionais. O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) também deve estar incluído na reforma, tanto por sua função arrecadatória como também pelo papel social da terra e pela preservação ambiental.
Uma quinta proposta, e não menos importante, se refere ao Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto no inciso VII do artigo 153 da Constituição Federal e que nunca foi regulamentado. Todo imposto gera consequências econômicas, e estudos demonstram que os impostos sobre o patrimônio líquido de pessoas físicas têm menos impacto negativo na atividade econômica de um país do que os impostos sobre salários ou produção. Essa mudança deve começar sobre a alta riqueza, priorizando o 0,1% que está no topo da renda.
Importante não perder de vista que toda e qualquer proposta de reforma tributária deve atender à Constituição brasileira, que diz que a cobrança de impostos tem que ser feita de acordo com a “capacidade econômica do contribuinte”. A reforma tributária ideal tem que priorizar a redução das desigualdades, reequilibrar a contribuição e reforçar a capacidade do Estado em oferecer serviços públicos de qualidade como previsto constitucionalmente.
Não podemos fugir à responsabilidade de construir um futuro inclusivo, justo e solidário que busque um desenvolvimento para toda a sociedade. A reforma tributária é basilar para essa caminhada. O Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar essa urgência.