Valor Econômico, v. 20, n. 4903, 18/12/2019. Legislação e Tributos, p. E2

 

A Lei de Falências e o direito de errar
 Bruno Valladão Guimarães Ferreira


 

Numa sociedade que adote a ideia do livre mercado, em que o indivíduo, e não o Estado, é o responsável pela geração de riquezas, é necessário que todos tenham o direito de tentar criar produtos e serviços. E como é inerente a essa tentativa, tenham também o direito de errar - e não uma, mas muitas vezes.

Com isso, a lei falimentar empresarial precisa oferecer sucessivas chances ao empreendedor. Todavia, infelizmente, nunca foi assim no Brasil. A atual versão do Substitutivo ao Projeto de Lei 6.229/2005 deve corrigir relevantes defeitos da falência.

Em praticamente todo período colonial, nosso território foi regulado pelas ordenanças dos reis de Portugal, inspiradas nos rígidos estatutos de cidades italianas da Idade Média e hostis à segunda chance ao comerciante falido. Sua reabilitação comercial era condicionava ao pagamento de todos os credores em curto prazo, ou ao decurso do prazo de  alguns anos após pagar alguns deles, ou até terminarem de cumprir pena na prisão.

Entre 1769 e 1850, vigeu a “Lei da Boa Razão”, que mandava aplicar a lei das “nações cristãs, iluminadas e polidas”. Na prática, os juízes adotaram preponderantemente as diretrizes do Código Comercial da França de 1807, o qual, por sua vez, refletia a rigorosa visão de Napoleão de que a lei deveria presumir a quebra fraudulenta, com a imediata prisão do comerciante para depois apurar-se se a fraude ocorreu, prevendo até as penas de prisão e de trabalho forçado ao devedor.

Esse Código francês também influenciou nosso Código Comercial de 1850, cujo processo de falência era, na prática, considerado lento, complicado e dispendioso.

Em 1908, foi publicada a Lei nº 2.024, cujas regras assemelham-se às atuais. Por ela, os falidos não condenados por quebra culposa ou fraudulenta poderiam ser reabilitados se conseguissem pagar ao menos 25% dos credores, e ainda precisariam aguardar o decurso de 20 anos contados da quebra, praticamente inviabilizando o exercício da profissão de comerciante por quem tivesse a falência decretada. Em 1929, veio o Decreto nº 5.746 que manteve integralmente as disposições da Lei de 1908 acerca da reabilitação.

Após, em 1945, entrou em vigor o Decreto-Lei nº 7.661. Aqui, as regras da reabilitação foram levemente alteradas com relação à legislação anterior, exceto quanto à falência culposa, extinta pelo Decreto-Lei; e as regras do procedimento judicial também foram ajustadas, sob a visão de que o processo deveria dividir-se em duas fases consecutivas: de informações e de venda de bens.

 

A Lei atual, de nº 11.101/2005, contém novidades nos processos de recuperação judicial e extrajudicial - embora este guarde algumas semelhanças com as antigas moratórias e concordatas preventivas.

No entanto, sua parte de falência é bem parecida com aquela de 1908, mantida pelas posteriores - aliás, a influência das leis pretéritas também é provada com o fato de que a de 2005 refere-se por diversas vezes a “o falido” para designar não só o empresário individual falido, mas, também, a sociedade falida, e assim o faz porque as leis anteriores foram editadas em épocas em que o comércio era realizado mais por comerciantes individuais do que por sociedades.

Com isso, a parte de falências da Lei de 2005 manteve defeitos de três gêneros das leis anteriores: foco, mentalidade e rito processual.

Com relação ao foco, permanece sendo o de reunir informações, postergando-se a venda dos bens o que, todavia, retira-lhes liquidez.

Quanto à mentalidade, parece persistir a visão dos legisladores de se preocuparem mais em punir do que dar uma segunda chance ao comerciante de boa-fé.

E, como consequência desses dois defeitos, a lei atribuiu exagerados ônus sobre o empresário e os administradores de sociedades falidas, e que perdurarão até sua reabilitação para empreender, a qual, na comum hipótese de a totalidade dos credores não ser paga, é verificada cinco anos depois do fim do processo de falência.

Não bastassem esses problemas, o rito processual da falência, por sua vez, continua lento, em decorrência, a nosso ver, de três fatores. Primeiro, a lei contém excessivos assuntos para serem tratados simultaneamente - verificação dos créditos, cumprimento de contratos não rescindidos de imediato; arrecadação e avaliação dos bens, para posterior venda; eventuais ações de restituição de bens; eventuais ações revocatórias de atos praticados antes e depois da decretação da quebra; e eventual ação de responsabilidade civil dos envolvidos -, sendo difícil dedicar-se com eficiência a todos eles.

Segundo, há temas em demasia para se solucionar depois de resolvidos tais assuntos simultâneos: exame das contas e do relatório final do administrador; sentença de encerramento do processo de falência e recursos; e a reabilitação do falido e administradores, que contém etapas e prazos semelhante aos do Decreto de 1890, época na qual a velocidade de comunicação era totalmente diferente da atual. E, terceiro, falta didática em sua própria redação. As seções dos capítulos não estão em ordem cronológica e há excessivas remissões. Com isso, a Lei mistura as sequências de atos, o que dá ensejo a discussões entre os intérpretes e, consequentemente, atrasa a tramitação do processo.

Todavia, apesar desse passado e do presente, existe luz no fim do túnel: a atual versão do Substitutivo ao Projeto de Lei nº 6.229/2005 deve corrigir alguns relevantes defeitos da falência. Destaque-se o foco na rápida venda dos ativos e a reabilitação do falido em três anos do começo do processo de falência e não em, ao menos, cinco anos de seu término. Torçamos para que sua redação final, pela primeira vez na história, possibilite um célere processo de falência e incentive o empresário honesto a tentar novamente o mais rápido possível e, com isso, seja importante fonte de incentivo para o empreendedorismo no Brasil.