Título: Um grito de socorro
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 11/10/2005, Internacional, p. A8

Moradores de cidades do interior do Paquistão, destruídas pelo terremoto de sábado, se revoltam com a falta de ajuda

MUZAFFARABA - Desesperados com o isolamento, falta de água, alimentos e remédios, centenas de milhares de feridos e desabrigados no terremoto de sábado que ainda esperam socorro já começaram a se revoltar com a demora. Com o número de mortos que pode passar de 40 mil no Afeganistão, na Índia e no Paquistão, a situação é mais volátil no interior paquistanês em função da falta de estrutura do governo de Pervez Musharraf. Justamente onde a natureza concentrou sua fúria máxima. Reflete sobretudo a opção de um regime ameaçado pelo extremismo religioso e pelo separatismo, que destina 3,1% do Produto Interno Bruto de US$ 347 bilhões, US$ 10,7 bilhões, só para as Forças Armadas. Como comparação, em infra-estrutura estavam previstos gastos de US$ 1,54 bilhão e, em educação, US$ 207 milhões, no biênio de 2005/2006.

Em Muzaffarabad, a capital da Caxemira paquistanesa, a impaciência se transformou em raiva. Sobreviventes atacavam os caminhões militares que chegaram à cidade, diante do olhar impotente dos soldados. Em poucos minutos, sumiram comida, barracas, mantas e medicamentos. No centro, armazéns também foram saqueados. Houve confronto violento quando os donos tentaram defender seus estabelecimentos, com luta e a polícia atirando para o alto. A gasolina também sumiu. As pessoas pegaram o combustível para aquecer o que sobrou de suas casas ou para cozinhar os poucos alimentos que ainda restam. Muitos estão vivendo sobre escombros. Outros vagam pelas ruas. Calcula-se que a tragédia tenha deixado pelo menos 4 milhões de desabrigados.

¿ Onde está o governo? Ninguém veio aqui até agora. As pessoas estão morrendo de fome ¿ gritava um sobrevivente, Akram Shah.

O único alento ontem foi a notícia da reabertura das duas principais estradas da Caxemira paquistanesa, ¿algo que deve melhorar bastante o acesso do resgate¿, segundo o Exército. Vários caminhões seguiam para Muzaffarabad e Balakot, as duas localidades mais afetadas. Muito pouco, diante das necessidades de centenas de vilarejos com acesso mais complicado e do próprio sofrimento das vítimas sem socorro adequado simplesmente porque os hospitais também ruíram.

¿ A maior parte das pessoas aqui está amaldiçoando o governo por até agora não ter a atenção de que precisam. Eu concordo ¿ afirma Ayub, um estudante de Medicina que ajudava no atendimento às vítimas.

¿ Os líderes do governo estão dando uma falsa impressão na mídia. Não há trabalho de resgate ¿ gritava um homem.

Em Bagh, uma das localidades mais remotas, o juiz local, Raja Mohammad Irshad, não escondia a irritação:

¿ Não estamos velando nossos mortos, mas nossos laços com o governo. Nos perguntamos o que acham que somos, se animais ou seres humanos ¿ criticou.

A situação levou as autoridades a definições sombrias a respeito dos reflexos da tragédia. Entre elas, estão militares que chamaram a atenção para o fato de o tremor de 7,6 na escala Richter ter eliminado ¿toda uma geração¿. A constatação vem das notícias de que adolescentes e crianças são o principal contingente entre os mortos.

Em Uri, na Caxemira indiana, mais de 100 homens e mulheres organizaram piquetes na estrada que cruza a região para protestar contra a falta de ajuda. Os manifestantes empunhavam paus e bandeiras pretas, em sinal de luto, e paravam os carros. Desesperados, sujos, cheios de raiva e de impotência, mais desabrigados chegavam durante o dia à via principal, após terem percorrido a pé vários quilômetros desde seus povoados nas montanhas com o objetivo de conseguir ajuda.

¿ Não temos nada: comida, abrigo, água. Mais de 2 mil pessoas estão famintas e isoladas ¿ contou Adel Rashid, morador do povoado de Urabha, que chegou ontem a Uri. ¿ As 200 casas da aldeia desabaram, mas ninguém chegou ao local ainda.

Segundo Rashid, alguns sobreviventes conseguiram chegar a um posto da polícia. Mas os policiais disseram que não podiam fazer nada e recomendaram que caminhassem com os feridos até o hospital mais próximo, a 6 km de distância, num caminho de montanha.

Outras vítimas em Uri se amontoaram ao redor dos poucos que sabem ler e escrever para fazer listas de feridos e de necessidades. Mohammaddin, um humilde camponês da localidade de Ghohalar, disse que 52 de seus vizinhos morreram e outros 200 ficaram feridos no desabamento das 500 casas do povoado:

¿ Não restou nada. Meu filho de quatro anos está com o braço quebrado há mais de dois dias, e o mais velho está com a perna sangrando. Minhas crianças estão dormindo ao relento, sem comida nem água. Não pudemos nem enterrar todos nossos mortos.

Apenas dois ou três helicópteros sobrevoam muito esporadicamente a região, atualmente só acessível por ar.