Título: Sim, eu tenho fé
Autor: Anthony Garotinho
Fonte: Jornal do Brasil, 11/10/2005, Outras Opiniões, p. A13

Como cidadãos, temos o direito de professar a nossa fé. Como governantes, agimos com imparcialidade A fé é a mais elevada paixão de todos os homens

Kierkegaard, filósofo dinamarquês (1813-1855)

A defesa do Estado laico tem servido como arma para aqueles que pretendem interditar o direito dos cristãos à atividade política. A separação entre Igreja e Estado é uma das maiores conquistas da civilização, legada à humanidade pela Revolução Francesa e pelas idéias iluministas. Mas nasceu, é preciso que se relembre sempre, tanto como forma de proteção do Estado da influência da Igreja quanto de defesa da Igreja da perseguição e da interferência do Estado.

A luta pela laicidade se confunde com a luta dos cristãos pela liberdade de culto e pelo direito à ação política. E antecede em muito a Revolução Francesa: em 1520, na primeira de suas grandes obras, Martinho Lutero defendia as bases do regime laico, segundo as quais o Estado não pode estar sujeito à tutela da Igreja, porque isso acaba por gerar governos teocráticos, em princípio contrários ao Evangelho. Para o líder da reforma que deu origem ao protestantismo, no entanto, essa separação clara de responsabilidades não rouba do cristão o direito - e mesmo o dever - à ação política e pública.

Se Estado e Igreja devem estar separados, política e religião podem, sim, caminhar juntas, porque o bem comum e as liberdades civis fazem parte da essência da ética religiosa. Para os cristãos das mais diversas linhas religiosas, a política é uma imposição moral e questão de fé doutrinária. Mas é também compromisso com a ética racional, fruto da sabedoria de filósofos gregos pagãos. Ambas, fé e razão, convergem na defesa do valor da vida e da justiça social. O discurso laicista, no entanto, tenta negar aos cristãos esse direito fundamental. Faz uso da mídia para brandir preconceitos, que, a pretexto de preservar o estado laico, tentam negar aos que professam alguma fé religiosa o direito à mais legítima das atividades humanas não-confessionais: a luta política.

Eu tenho fé e me orgulho disso. Fé religiosa - protestante, reformada, calvinista - e fé política, traduzida na confiança de que o Brasil será capaz de se tornar um país justo para todos, sem distinção de qualquer tipo. Mas somos vítimas - eu e minha mulher, Rosinha - de uma das maneiras mais clássicas de esconder a verdade: a divulgação deliberada de meias-verdades.

É comum, por exemplo, acusarem a mim e a Rosinha de implantar o ensino do criacionismo nas escolas públicas do Estado do Rio. Eis, se tanto, uma meia-verdade. A lei, de autoria do deputado Carlos Dias, um católico fervoroso, autorizou o estado a introduzir o ensino religioso nas escolas apenas como disciplina opcional. De resto, não fez mais do que cumprir o que determina o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996.

A intolerância laicista tenta impor como verdade que se trata de manobra sórdida para submeter os alunos a doutrinação evangélica. Isso nem meia-verdade chega a ser. Durante um ano, um conselho formado por padres, pastores e voluntários de vários ramos religiosos debateu a lei e decidiu que a disciplina seria opcional e ministrada por professores contratados por concurso público. O número de professores aprovados obedece rigorosamente aos dados do IBGE sobre a proporção de cada religião no país. Por essa razão, dois terços dos professores são católicos, não havendo, portanto, privilégio para qualquer segmento religioso.

Como cidadãos, eu e a governadora Rosinha Garotinho temos o direito de professar a nossa fé. Na condição de governantes, como não poderia deixar de ser, agimos com imparcialidade, tomando medidas que visam ao atendimento de todos os segmentos religiosos.

É esta a nossa opinião. A garantia do Estado laico só é verdadeiramente democrática se permite a cada indivíduo a liberdade de professar a sua fé. O fundamentalismo costuma se expressar nos dois extremos dessa questão: tão perigoso quanto misturar Igreja e Estado é implantar uma ditadura de céticos.