Título: A sutil distinção
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: Jornal do Brasil, 11/10/2005, Outras Opiniões, p. A13

O presidente Lula pretende ter posto fim à crise política passados quatro meses - em que a sucessão de denúncias não se interrompia um só dia - confraternizando com a banda do PT, de que fazem parte seis deputados que provadamente se abasteceram no cofre irregular de Marcos Valério e seus inconvincentes empréstimos nos bancos Rural e BMG. O presidente, em face das provas da comprometedora conduta dos dirigentes petistas, declarou-se traído e acenou com o pedido de desculpas à Nação, quer do PT como do próprio governo, deu a impressão de ser vítima. Agora faz uma distinção entre procedimento corrupto e apenas errôneo. Fica-se em dúvida quanto à concepção que tem o presidente de traição, ora transformada em seu julgamento em simples traquinada juvenil. Confesso não ter a devida iniciação filosófica de que faz uso o chefe da Nação, que me deixa confuso sobre o que é a verdade.

Abrigo-me na lição do emérito filósofo Miguel Reali, uma das personalidades mais respeitadas na matéria. Ensina ele que a verdade é suscetível de demonstração, por meio de três teorias lógicas: a da correspondência, a da coerência e a pragmática. Detenho-me principalmente na primeira, segundo a qual uma proposição é verdadeira ''se existe algum fato ao qual corresponda''. Ou que, ''em outras palavras, uma proposição é verdadeira se expressa o que efetivamente ocorre''. Ora, é cristalino o recebimento de recursos financeiros ilícitos, por parte de numerosos grupos de deputados - do PT inclusive - que fizeram retirada de dinheiro comprovada no Banco Rural de Brasília, diretamente ou por interposta pessoa da sua intimidade pessoal ou funcional. A diferença dos valores, por vezes, sugeria um enigma. O deputado por São Paulo, professor Luizinho, que era líder do PT na Câmara dos Deputados, recebeu R$ 20 mil, enquanto ao deputado paraense Paulo Rocha, seu substituto na liderança, coube R$ 900 mil. Por que um é professor e outro é um gráfico? Ridículo. Não foi por isso de modo algum. Até porque Delúbio é professor e não pode queixar-se. Solução do enigma só ao PT cabe. A diferença por importância dos colégios eleitorais não explica, já que São Paulo é enormemente maior que o Pará. De resto, Rondônia que é dos menores colégios eleitorais deu a muitos vereadores corruptos, 50 mil reais a cada um, claro desprestígio para o professor petista.

Voltemos à lição de mestre Miguel Reali, o pai, que prefiro, pois com o mesmo nome há o filho que também é jurista. O recebimento comprovado, mensalmente ou não, porém mais de um ano depois das últimas eleições, efetivamente ocorreu, a sugerir fortemente a ilegalidade, o fato real era negado de início, mas depois admitido como auxílio para pagar consulta médica - tudo absolutamente inverossímil - e finalmente, após a senha que veio de Paris - e tudo indica pela iniciativa do ministro da Justiça, um talentoso e bem sucedido defensor de criminosos, confessada como meios de pagamento de dívidas ainda das eleições. É isso que o presidente Lula - agora garantido contra imprevistos na Câmara - condena, mudando o tom e a suposta revolta que o levou a usar a dura palavra traição. O erro teria sido apenas a inverdade inicial, o que passa a ser relevante até porque em Paris o presidente sentenciara que no Brasil isso é absolutamente comum e tradicionalmente feito pelos candidatos. É o caixa 2. Como ele foi quatro vezes sucessivas candidato a presidente da República, é lógico concluir que o PT é habitual nisso. Outra vez, porém, a teoria da correspondência não lhe é favorável. Fatos ocorreram, coincidentemente, nas vésperas ou nos dias de votações importante para o governo, a ponto de a secretária de Marcos Valério distribuir tanto dinheiro, por ela contado em notas de 50 ou cem reais, a tantos beneficiados - ''que ela desconhecia''! - que chegou a ter os dedos doridos de tanto esforço. Além da incrível discrição da secretária, quanto aos recebedores da dinheirama, há a coincidência da data das votações mais importantes. Resta salientar que o traído de ontem e o benevolente julgador de hoje referiu-se só aos seus antigos companheiros do PT. Que dirá de Janene e do loquaz Waldemar da Costa e Silva, que não pertencem ao PT? A quantos ''companheiros de aliança'' dirá o mesmo?

Todos teriam cometido só o ''erro'' de tentar explicação inicial para um fato comum na tradição eleitoral do Brasil? Como explicar a rendição dos trânsfugas ao fascínio do presidente da República, apressando-se a engrossar com seus votos a base de sua sustentação na Câmara dos Deputados, até para votar o esbulho dos aposentados, pelo bem do Brasil?

Enfim todos são corretos, mas, como escreveu Machado de Assis num dos seus contos: ''Todo mundo é muito honesto mas roubaram o meu capote''...

Jarbas Passarinho escreve no JB às terças-feiras, a cada 15 dias.