Valor Econômico, v. 20, n. 4906, 20/12/2019. Especial, p. A14
“Delações aceitas pela PF precisam ser reavaliadas”
Entrevistado : Gilmar Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal
Personagem decisivo na rápida mudança de jurisprudência sobre a prisão após condenação em segundo grau, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes defendeu a revisão de outro entendimento recente da Corte: o de que a Polícia Federal (PF) tem legitimidade para firmar acordos de delação premiada.
Em entrevista exclusiva, o ministro disse que houve um “entusiasmo juvenil” com o instituto da delação, que acabou, segundo ele, se prestando à criminalização da política. Uma das figuras mais controversas da República, Gilmar ainda criticou a fragilidade de colaborações fechadas com a PF - como a do ex-ministro Antonio Palocci e, mais recentemente a do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral.
"Há déficit de informação. E a gente entende, pois democracia é um regime complexo. Tem que construir consenso”
Ao fazer uma rara análise sobre o governo Jair Bolsonaro, Gilmar disse, em resumo, que o presidente é menos ameaçador do que parece. “Ele fala para um público que o segue e apoia, mas não tem ações que deem impulso ao seu discurso”, avaliou. É por isso que, em sua avaliação, a democracia brasileira não está sob risco.
Aberto sobre seus desafetos, voltou a criticar o ministro Sergio Moro por ter atuado como “sócio” do Ministério Público Federal (MPF) quando era juiz da Lava-Jato em Curitiba. A análise sobre a suspeição do ex-magistrado deve ocorrer ainda no primeiro semestre, anunciou.
Disse ainda “ter pena” do Brasil por ter tido um procurador-geral da República com “delírios assassinos” (refere-se a Rodrigo Janot, que relatou em livro ter ido armado até o STF com a intenção de matá-lo) e classificou como “fruto do subdesenvolvimento” a ação de danos morais movida pelo procurador Deltan Dallagnol, após suas duras críticas à condução da Lava-Jato.
A seguir a íntegra da entrevista:
Valor: Um dos focos em 2020 é o seu voto-vista sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro. Por que o senhor não colocou este tema para votação este ano?
Gilmar Mendes: A pauta ficou inadministrável. Tivemos aquele caso do ministro do TCU [rejeição de denúncia contra o ministro Aroldo Cedraz], foram vários dias de julgamento. Depois teve Geddel [Vieira Lima, ex-ministro condenado no caso do “bunker”] que também consumiu uma energia enorme. Em suma, são pautas complicadas, como é a rotina na turma. No final, já faltava gás. E este é um caso que merece reflexão. Vamos ter que dedicar mais de uma sessão. Devo liberar ainda no primeiro semestre.
Valor: O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala que esse julgamento pode mostrar que ele é inocente. Isso está em questão?
Gilmar: De todos os lados, tem retórica. O que está em jogo aqui é verificar se foram seguidos os parâmetros de imparcialidade. São as condições que a legislação estabelece. É isso que precisa ser bem examinado, sem paixões.
Valor: Qual a contribuição das conversas vazadas pelo site “The Intercept Brasil” a esse caso?
Gilmar: Esse é um debate que certamente estará presente. Aí vem a questão da ilicitude da prova, sua utilidade ou não. Esse é um tema que, ainda que não seja fundamental para o julgamento, poderá ser invocado.
Valor: Depois que o STF derrubou a prisão após condenação em segunda instância, o tema passou a ser discutido no Congresso. Como está avaliando esse debate?
Gilmar: Tenho a impressão de que um bom caminho já está ocorrendo com o pacote anticrime, que atualiza a questão da prisão provisória. Criar hipóteses de prisão provisória em segundo grau era um pouco a premissa de que partia o Supremo em 2009. Talvez o nosso equívoco, ao fazer a revisão em 2016, tenha sido não assentar que não era para todos os casos. E então o próprio TRF-4 editou súmula dizendo que, havendo decisão de segundo grau, já se determina a execução da pena. Isso começou a gerar perplexidade aqui, porque se entendia ser uma prisão sem fundamentação.
Valor: O Supremo mudou essa jurisprudência em um intervalo curto de tempo. Isso não gera insegurança jurídica?
Gilmar: É normal. Quando eu cheguei aqui, em 2002, a jurisprudência do tribunal era mais ou menos invariável. O entendimento era o de que se podia executar a pena após decisão em segundo grau. Depois veio aquela mudança em 2009. Naquela mudança talvez nós deveríamos ter nos engajado, sugerido mudanças no próprio texto legal. Se de fato a gente conseguisse ter prazos razoáveis, isso tudo deixaria de ser tão preocupante. A própria mudança em 2016 foi a partir de amostras de abusos do poder de recorrer, em que o sujeito lograva ficar com um recurso aqui dez anos, perseguindo a prescrição. Mas é claro que para isso tem remédio. O próprio ministro Toffoli acaba de propor alteração para que nos casos dos recursos que ascendam ao Supremo haja uma suspensão da prescrição.
Valor: O ministro Moro costuma dizer que tanto faz se o Congresso garantir a prisão por segunda instância por PEC ou projeto de lei. Qual o melhor caminho?
Gilmar: É preciso que de fato haja emenda constitucional, senão nós receberíamos um diploma de idiotas por ter perdido tanto tempo aqui.
"[Bolsonaro] fala para um público que o segue, que o apoia, mas não tem ações que deem impulso ao seu discurso. E nem pretende”
Valor: A Lava-Jato deflagrou semana passada sua 70ª fase. Ainda é tempo de avançar ou já é hora de terminar?
Gilmar: É inegável a colaboração dada pela Lava-Jato no combate à corrupção. Toda hora a gente vê esse amontoado de fraudes, tanto na esfera pública quanto na privada. Mas tenho a impressão de que todos os setores terão que fazer um balanço, inclusive sobre o que se deve alterar na Lei das Delações. A gente vê que há usos úteis, mas também abusos. O combate à corrupção é uma atividade contínua, com ou sem Lava-Jato.
Valor: Como o senhor avalia a figura do juiz de garantias, incluída no pacote anticrime?
Gilmar: É um bom passo, mas claro que não se consegue implementá-lo de imediato. São Paulo tem a experiência do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) em que há juízes que só cuidam da instrução e das medidas cautelares. Em Portugal também tem. Nesse modelo, quem colhe as provas, para evitar efeitos de contaminação, não vai julgar o caso, evitando parcerias perigosas em que o procurador vira sócio do juiz na causa. Tudo é um aprendizado. Acho que precisa ser de fato experimentado.
Valor: O senhor tem criticado reiteradamente o instituto da delação premiada. Qual é o principal problema?
Gilmar: Toda aquela confusão que veio à tona com o episódio Joesley [Batista, executivo da JBS ] mostra uma precipitação, um improviso, um voluntarismo do Ministério Público. Então tudo isso precisa ser revisitado, inclusive a qualificação dessas delações. A própria polícia tem classificado algumas como “imprestáveis”, como a do Delcídio [Amaral, ex-senador] e a do Sérgio Machado [ex-presidente da Transpetro] Houve, de fato, um certo entusiasmo juvenil com o instituto das delações premiadas. E, claro, ele se prestou também, para uma certa criminalização da política.
Valor: É por isso que muitos inquéritos abertos a partir de delações têm resultado em arquivamento no STF?
Gilmar: São muitos arquivamentos. Arquivamentos sistêmicos. Eram imputações muito vagas. No caso da Odebrecht, tendo em vista o envolvimento amplo da empresa, muitos daqueles escalados para delatar talvez não soubessem nada daqueles fatos - e acabaram sendo brifados a passarem informações genéricas, que depois acabaram por não se confirmar.
Valor: A rescisão das delações de executivos da JBS está marcada para o dia 17 de junho. Pode ser o momento de o Supremo fazer mudanças e estabelecer parâmetros?
Gilmar: Certamente este é um caso singular em que de fato dar a indulgência plena parece que foi um pouco demais, tanto é que depois a Procuradoria não soube mais o que fazer com aquilo e hoje nós temos três pedidos de cancelamento - primeiro do Janot, depois da Raquel Dodge e agora do Augusto Aras. O Joesley tinha a maior bancada do Congresso Nacional. Havia algo de errado. Porque se deu a ele a imunidade total que não se poderia dar para um chefe de quadrilha. E ele só poderia ser chefe de uma organização criminosa. Tenho a impressão que cada relator de delação, hoje, está muito mais atento. Antes, deixava cair a caneta e homologava. Alguns delatores podiam escolher o momento da pena, outros tinham direito de ir à missa, encontrar a mãe. Sem nenhuma base legal. A prática foi muito anárquica.
Valor: Algumas delações foram rejeitadas pelo MPF e aceitas pela PF, depois que o Supremo decidiu pela legitimidade de ambos para firmar acordos de delação
Gilmar: Essa é uma questão que terá de ser talvez reavaliada. À época dessa decisão, sopesou muito a ideia de que era preciso ter um certo equilíbrio entre o MP e a PF. Já havia a decisão anterior do tribunal sobre o poder de investigação do MP, que acabou tendo efeitos extravagantes. Mas estamos com dois casos que são casos de escola. Um é o caso Palocci. São informações que estão no Google, muita coisa de “ouvi dizer”. Outra é o caso do Cabral. Mas isso tudo não invalida a experiência. Sabemos todos que a corrupção exige de fato meios mais enfáticos de combate, mas é preciso também ter o devido controle. Até porque os órgãos de combate à corrupção também se corrompem.
Valor: Pode dar exemplos?
Gilmar: Os exemplos brasileiros são suficientes. Todos os episódios que estão aí O que ocorreu com o Marcello Miller [ex-procurador acusado de aconselhar a JBS quando ainda era membro do MP], essa fundação de Curitiba, esses episódios envolvendo procuradores, delegados, pessoal da Receita. O chefe de programação da Lava-Jato no Rio, da Operação Calicute, está preso. Era o homem da Receita.
Valor: O senhor é muito criticado pelo número de habeas corpus que concede. É uma maneira de modular essas decisões da Lava-Jato?
Gilmar: Não. Se você olhar, segundo estatísticas do gabinete, na Segunda Turma eu sou o ministro que mais concede, mas logo depois vem o ministro Edson Fachin [relator da Lava-Jato], e em número muito próximo. Todos os casos em que eu concedi estão confirmados na turma. A prisão provisória tem pressupostos. Não pode ser feita para que o sujeito seja convencido a delatar. Isso não está escrito em lugar nenhum. A prisão diz respeito a fatos atuais? Tem risco de fuga? Houve destruição de prova ou ameaça de testemunha? Se não, não se justifica.
Valor: O senhor também é um crítico contumaz do MPF. A partir de que momento viu que, na sua avaliação, o órgão cometia abusos?
Gilmar: Há várias falas minhas dizendo que temos encontro marcado com as prisões alongadas de Curitiba. Sempre apontei que havia exageros nessa sistemática. Advogados vinham aqui e relatavam que o MP indicava as pessoas que deveriam ser delatadas, caso contrário os benefícios não seriam concedidos. Isso não é bom para o sistema. Eu desconfiava do que foi publicado pelo “The Intercept Brasil”. Eu tinha as informações - e a gente também sabe ler estrelas, fazer conexões. Nesse sentido, não me surpreendeu, mas claro que determinadas práticas chocam. Quando um procurador conversa com um auditor fiscal, um superintendente da Receita, e diz para ele olhar determinada conta sem deixar digitais, esse sujeito o faz e depois vira chefe do Coaf aí você botou a raposa pra cuidar do galinheiro. Nos trópicos ou fora deles, isso é crime.
Valor: Como o senhor vê a possibilidade de Moro vir a ocupar uma cadeira na Corte?
Gilmar: Eu não vou emitir juízo sobre isso. É um processo complexo que cabe ao presidente da República. É imensa a responsabilidade do presidente e do Senado na definição dessas duas vagas. São dois decanos deste tribunal, com larga experiência. E a primeira vaga é a do ministro Celso de Mello. Por todos os títulos reconhecidos, eu tenho pena do sujeito que vier a substituí-lo, certamente será inevitável a comparação. Terá que ser muito bem alfabetizado em direito constitucional.
Valor: Recentemente, o procurador Deltan processou o senhor por danos morais. Isso o preocupa?
Gilmar: Ele também fez muitas críticas ao tribunal. Isso, na verdade, é fruto do nosso subdesenvolvimento.
Valor: O senhor acha que Janot realmente veio ao STF armado?
Gilmar: Não vou falar sobre isso, mas fico com uma pena imensa do Brasil de ter tido alguém como ele na PGR. Por ali passaram pessoas de muita envergadura, que depois foram inclusive ministros do Supremo. Quando se vê que o cargo é ocupado por um sindicalista que bebe e tem delírios assassinos, é preocupante. Essa é uma lição para todos nós: precisamos qualificar mais as nossas indicações.
Valor: Diante de um governo conservador no Brasil, o senhor vê nossa democracia sob risco?
Gilmar: A democracia é uma planta que precisa ser regada todo dia. Há ameaças de diversas ordens. Quando vemos essas manifestações de jovens bendizendo a ditadura, percebemos que há algum déficit de informação. E até entendemos, pois a democracia é um regime complexo. Você tem que construir consenso e isso dá a impressão de que o sistema não funciona, não é dinâmico. Mas isso faz com que as decisões sejam racionalizadas, ponderadas. O presidente lança uma medida provisória e ela é transformada no Congresso, que tem uma boa diversidade. São pessoas que conhecem a realidade brasileira. Vejam a reação que houve à reforma da Previdência quando se disse que cortariam os benefícios mínimos. Fale isso para um nordestino e ele repele a ideia. Temos que estar muito atentos, inclusive em relação aos nossos próprios autoritarismos. Quando pensamos em prisões alongadas, prisões provisórias ilimitadas, estamos substituindo os ditadores. Não devemos querer esse poder para o presidente da República, mas também não devemos querer para o juiz, para delegado, para o chefe de Receita. Mas eu não vejo possibilidade de a democracia acabar. O Brasil de 64 era um outro Brasil.
Valor: Mas tem ministro e deputado falando em AI-5
Gilmar: Ali foi uma expressão para apontar a disfuncionalidade, a dificuldade mesmo de fazer com que haja deliberações. As pessoas têm um ideal de que vão fazer diferente. Quando assumem e têm que fazer a máquina funcionar, obviamente se deparam com dificuldades concretas. Outros não fizeram não porque eram incompetentes, mas porque há dificuldades. Faz parte do processo democrático que as discussões se alonguem, que projetos de lei não sejam aprovados de imediato. Compreende-se a aflição de quem tem que dar resposta a quem está esperando. Mas nós estamos celebrando 31 anos da Constituição. São 31 anos de normalidade institucional. Podemos falar que o sistema tem falhas, e tem, mas as franquias democráticas estão mantidas.
Valor: O senhor faria uma avaliação sobre o governo Bolsonaro?
Gilmar: Em relação ao presidente, há uma singularidade: é uma nova personalidade política. Precisamos analisar o seu discurso e a sua ação. Ele fala para um público que o segue, que o apoia, mas não tem ações que deem impulso ao seu discurso. E nem pretende, me parece evidente. Por outro lado, a alguns atos que foram questionados o tribunal reagiu: a extinção dos conselhos, a reedição de medida provisória, a questão da homofobia e do Estatuto da Criança e do Adolescente. O próprio Congresso também tem reagido, derrubando medidas provisórias e vetos. As instituições estão funcionando e não me parece que haja impulsos de corrosão da democracia por iniciativa do presidente.
Valor: As ameaças ao Supremo estão sendo investigadas no chamado inquérito das “fake news”. Falou-se sobre seu efeito pedagógico para diminuir os ataques nas redes sociais, mas também houve críticas. Alguma hora ele vai acabar?
Gilmar: Temos inquéritos que nós mesmos abrimos a pedido da PGR há cinco, oito, 12 anos. Mas isso não causa irritação em vocês. Agora esse inquérito dura um ano e vocês estão aflitos. Havia previsão no regimento.
Valor: O ministro Paulo Guedes propôs a criação de um Conselho Fiscal da República, para reunir representantes de todos os Poderes em torno da sustentabilidade financeira na administração pública. Ao participar disso, o STF não teria sua credibilidade prejudicada ao ter de analisar casos que eventualmente sejam judicializados?
Gilmar: Não sei qual vai ser o processo. Talvez seja uma questão mais de informações. Acho importante que se saiba como as coisas estão funcionando, quais os riscos, os problemas. Não vejo constrangimento futuro. Acho que o conselho não fará deliberações ou praticará atos. Deve ser mais um processo de troca de informações, inclusive para que ele possa se orientar no âmbito do Judiciário.