O Globo, n. 32647, 25/12/2022. Opinião, p. 2

O Estado moderno

Merval Pereira


Parece estar chegando a boa solução o impasse em torno de dois símbolos de um governo de frente ampla que ajudaram decisivamente Lula a vencer, por pequena margem, a eleição presidencial. Os relatos das diversas conversas que o presidente eleito vem tendo indicam que ele não apenas reafirma a intenção de refletir no ministério esse caráter amplo de sua candidatura, como não abrirá mão das duas mulheres que foram símbolos da campanha: Simone Tebet e Marina Silva.

Aparentemente venceu a tese de Marina de que a “autoridade climática” sugerida por ela tem um caráter técnico, não político, não fazendo sentido que se lhe dê um status de ministério ligado à presidência da República. No programa aceito pelo PT, Marina Silva reivindica o que chama de uma agenda ambiental transversal, pois "é necessário promover o alinhamento das políticas públicas, em especial as políticas econômicas, fiscal, tributária, industrial, energética, agrícola, pecuária, florestal, da gestão de resíduos e de infraestrutura, aos objetivos gerais do Acordo de Paris, de forma a cumprir os compromissos assumidos pelo Brasil por meio de sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC)”.

A ideia de uma “política transversal” tem tudo a ver com a visão da organização administrativa de um Estado moderno. Muito apropriadamente, quando se inicia um novo governo, dois especialistas em gestão pública, Francisco Gaetani e Miguel Lago, lançam um livro sobre o tema intitulado “A construção de um Estado para o século XXI”. Consideram que as políticas públicas abrangem o conjunto de características que modelam o funcionamento da máquina administrativa federal. São sistêmicas, perpassam toda a máquina pública do Executivo federal e afetam a dinâmica do conjunto da administração pública, assim como a qualidade dos serviços prestados à sociedade.

Francisco Gaetani tem quatro décadas de vivência na administração pública, tendo sido secretário-executivo de dois importantes ministérios: o do Planejamento e o do Meio Ambiente. Dirigiu a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e a Fundação João Pinheiro. Miguel Lago, mestre em Administração Pública pela Sciences Po Paris, é co-fundador do Meu Rio, e dirige o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.

Gaetani e Lago concordam em duas premissas: o Estado brasileiro ainda está por construir-se, e o governo atual desmantelou em quatro anos esforços de décadas de profissionalização da administração. Para eles, o Brasil ainda tem tarefas a realizar que deveriam estar prontas desde o século 19, entre elas estruturar áreas essenciais do Estado, como os Ministérios da Educação e Saúde.

O livro foi publicado pela República.org, uma instituição do terceiro setor voltada para a modernização do Estado brasileiro e a valorização dos servidores públicos. Segundo Lago, é errado pensar que o Estado no Brasil é muito grande, ou que é uma espécie de parasita que recebe muito sem dar retornos à sociedade. Para ele, esses críticos “não têm a compreensão sobre a importância desses serviços para toda a sociedade”.

A professora de administração pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas, Gabriela Lotta, na apresentação do livro, diz que a crise da democracia e ascensão da extrema direita que temos testemunhado em vários lugares do mundo — entre eles, o Brasil, é consequência da perda de legitimidade do Estado, do governo e da administração pública. “O governo tem como papel central representar o povo e garantir, por meio da administração pública, que os cidadãos tenham acesso a seus direitos. Estado, governo e administração pública perdem a legitimidade na medida em que se afastam dos cidadãos, não representam seus interesses, nem são capazes de garantir direitos e prover serviços que supram suas demandas”.

O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Antonio Anastasia destaca um dos “mitos e falácias a respeito das instituições públicas” que são apontados no livro: “Mais Brasil, menos Brasília” é uma frase recorrente, crítica à centralização de poderes na capital. Anastasia, que foi governador de Minas e senador, prefere “mais e melhor Brasília”, como aprimoramento do serviço público essenciais. Uma das premissas do livro, por sinal, é a necessidade de criar um corpo permanente de servidores públicos que tenham a compreensão de que governos são transitórios, por isso a necessidade de um Estado capaz de funcionar independentemente do governo do dia. Já temos instituições desse nível, como o Itamaraty, a Receita Federal, as Forças Armadas, que foram desviadas de suas funções durante o governo Bolsonaro.