Título: Intolerâncias
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 12/10/2005, País, p. A2
Um fiel "desequilibrado" da Assembléia de Deus apedrejou a imagem de Nossa Senhora, durante a procissão do Círio de Nazaré, em Belém. O "bispo" da Igreja Universal do Reino de Deus, Sérgio von Helder, esmurrou e chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, em programa de televisão visto por milhões de pessoas, faz dez anos hoje - e não era desequilibrado. A mesma Igreja Universal promove rituais estranhos, como o da "fogueira de Israel", cobrando, para isso, espórtulas generosas de seus pobres fiéis, já obrigados ao dízimo com o qual se constroem majestosos templos e palácios, e se sustenta o bem-estar de seus "bispos". Há mais ou menos um mês, outro "desequilibrado" matou, a enxadadas, seus velhos patrões, um casal de japoneses, em chácara de Brasília. De acordo com as testemunhas, o assassino, convertido há alguns meses à mesma Igreja Universal, sentiu-se incumbido, pelo pastor, de "retirar os demônios" do corpo dos anciãos. Atemorizados, os patrões o despediram. Matou primeiro a patroa, e depois o patrão, a pedradas e a enxadadas, gritando que o fazia "em nome do Senhor". A Polícia fechou a igreja local.
Até mesmo pelas circunstâncias históricas, que nos impuseram ecumenismo e sincretismos, havia boa convivência entre as crenças religiosas no Brasil. Tivemos manifestações de fanatismo, como em Canudos e no Contestado, mas esse fanatismo se explicava pela rebelião social. Em Malacacheta, Minas, há mais de 50 anos, fanáticos protestantes, dizendo-se seguidores de Abraão, mataram e queimaram, em enlouquecido ritual, sete crianças, filhas dos próprios assassinos.
Em excelente ensaio sobre os limites da tolerância, Marcuse denunciou os que, em nome da tolerância democrática, haviam sido complacentes com Hitler durante o declínio da República de Weimar. Houve um momento em que estavam claros os objetivos totalitários de Hitler, e existiam condições para que lhe tolhessem o passo, se todos os democratas a isso se dispusessem. Mas, fosse já pelo temor, diante da retórica ameaçadora dos nazistas, com suas S.A., fosse por ilusória cumplicidade, os partidos de centro e da direita católica se uniram ao Führer e lhe deram respaldo legal para a ditadura.
No uso de testemunhos de "beneficiados" pelos ritos da igreja, que até podem ser verdadeiros pela intervenção do acaso, os pastores vendem promessas de êxito nos negócios, na saúde e no amor, em troca de dinheiro vivo.
O espantoso "faturamento" das sacolinhas ficou exposto, com a apreensão recente de mais de R$ 10 milhões, em malas em poder de parlamentares que são "bispos" da igreja de Edir Macedo, que os transportavam em aviões fretados.
A Constituição assegura a todos o direito à própria crença. O bispo e seus pastores (bem como outros bispos e outros pastores de outras igrejas) têm todo o direito de reunir seus fiéis, e não se pode impedir que os fiéis se deixem explorar em nome de Deus. Mas é preciso que o Estado laico, como é o nosso, imponha limites à intolerância religiosa. Temos o dever de ser intolerantes contra os intolerantes. O "bispo" que chutou por 11 vezes e deu três murros na imagem da Padroeira (a que os católicos dedicam o dia de hoje) não foi molestado pela lei, nem repreendido devidamente pelo seu chefe. Ao contrário. Sérgio von Helder foi "transferido" para o exterior. Como se lembra, seu ato iconoclasta expressou racismo: aos gritos, o pastor se referia à face escurecida da santa, ao berrar que Deus não podia ser "comparado a um boneco tão feio, tão horrível".
Sabe-se que há investigações em curso, em torno da movimentação financeira da Igreja Universal. Esse procedimento se arrasta há anos, ao que parece sob pressões políticas. A criação do "partido do bispo" é uma forma de espichar a tolerância da Justiça diante de atividades nada cristãs de Edir Macedo e outros.
A Igreja Universal apregoa o objetivo de conquistar o poder político, e para isso já organizou o próprio partido. Podemos imaginar o que seria do país sob um governo dominado por tais fundamentalistas.