Valor Econômico, n. 4950, 29/03/2020. Opinião, p. A17

Independência dos BCs já era?
Howard Davies


A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de nomear a economista Judy Shelton para uma das vagas no conselho do Federal Reserve (Fed) colocou o futuro da independência do banco central de volta na agenda. Shelton lançou uma dúvida sobre a necessidade e a base legal da independência do Fed ao afirmar no ano passado que “não vejo nenhuma referência à independência na legislação que tenha definido o papel do Federal Reserve”. E ela defendeu “uma relação mais coordenada com o Congresso e o presidente”. Se a política do Fed fosse “coordenada” com Trump, ficaria claro quem iria dar as ordens.

É claro que um novo presidente regional do Fed não conseguiria mudar décadas de práticas. Mas há indicações de que, se nomeada, Shelton poderá substituir Jay Powell quando o mandato deste chegar ao fim em 2022, o que deixaria uma raposa cuidando do galinheiro.

E não é só nos Estados Unidos que a independência do banco central está ameaçada. Na Turquia, o presidente Recep Tayyip Erdogan demitiu o presidente do banco central no ano passado, dizendo que “dissemos a ele várias vezes para cortar as taxas de juros”, mas ele não obedeceu. Na Índia, o governo pediu ao Reserve Bank que repassasse parte de suas reservas e o presidente Urjit Patel renunciou por “razões pessoais”. Seu principal vice fez o mesmo logo depois com um ataque verbal violento direcionado ao governo do primeiro-ministro Narendra Modi: “Governos que não respeitam a independência do banco central cedo ou tarde enfrentam a ira dos mercados financeiros”.

Bancos centrais de todas as partes do mundo estão preocupados com esses indícios. Otmar Issing, o primeiro economista-chefe do Banco Central Europeu (BCE), escreveu sobre “o futuro incerto da independência do banco central”. O então presidente do BCE, Mario Draghi, emitiu uma defesa firme do conceito antes de deixar o cargo. O Banco de Compensações Internacionais (BIS) mencionou “o extraordinário fardo colocado sobre a atividade de banco central desde a crise [financeira global de 2008]” e alertou que os bancos centrais não podem atuar de acordo com as expectativas que as pessoas têm. Joachim Fels, da

Estarão certos esses profetas da perdição? Veremos em breve o controle sobre os juros de volta às mãos autocentradas dos ministros das finanças? Nas palavras de uma música conhecida, será que a independência do banco central é uma “fase idiota por que estamos passando”?

Acredito que não. A mais recente pesquisa global feita pelos economistas Nergiz Dincer e Barry Eichengreen, embora confessadamente conduzida em 2014, mostra que ainda há um “movimento contínuo em direção a uma maior transparência e independência ao longo do tempo e poucas indicações de que essas tendências estão sendo repensadas”. Alguém pode ter razões para não gostar das medidas de independência que eles usam - segundo o modelo dos dois, o Quirguistão tem o banco central mais independente do mundo -, mas não conseguirá encontrar nenhum caso de implementação de mudanças na legislação que colocaram um banco central sob controle político.

No Ocidente, embora contrariado, Trump nomeou Powell, um homem com instintos e determinação convencionais. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, resistiu à tentação de nomear um defensor do Brexit para o Banco da Inglaterra (BoE) e nomeou um veterano e conhecedor profundo do BoE, Andrew Bailey, que tem a independência nos ossos.

Na zona do euro, uma escolha também neutra foi feita em relação ao sucessor de Draghi, além do que uma mudança no status do BCE exigiria um novo tratado para a União Europeia. As chances disso são muito pequenas. Os líderes da UE não dão sinais de querer assumir o risco de abrir a constituição para outros referendos, como seria necessário em alguns países.

Além disso, parte da pressão política por ação diminuiu. A confiança no BCE caiu bastante depois da crise da zona do euro há quase uma década, mas ela foi recuperada na maior parte dos países nos últimos dois anos. Até mesmo na Grécia o BCE é mais digno de confiança o governo nacional.

É fato que está havendo uma mudança na retórica política. Após um longo período em que os governos resistiram a quaisquer comentários sobre as decisões sobre os juros, alguns agora se tornaram mais eloquentes. Jacob Rees-Mogg, o líder Conservador da Câmara dos

Comuns, chamou Mark Carney, o presidente do BoE que está de saída, de um “político canadense de segunda linha” que não deu conta do recado em casa, depois que Carney discordou do julgamento econômico de Rees-Mogg sobre os custos do Brexit. E Trump caracteristicamente se aproveitou disso com críticas ao Fed no Twitter.

Será que os bancos centrais deveriam ter essa polêmica renovada como uma coisa ruim e perigosa? Eles poderiam, se quisessem, mas suspeito que eles estejam ignorando a realidade. Entramos em uma era menos reverente, o que não surpreende dados os erros cometidos pelos bancos centrais (e outros) depois da crise de 2008. Em vez de lamentar o aumento dos comentários e contestações, os bancos centrais precisam melhorar seu desempenho, aumentar sua transparência e melhorar na explicação e justificativa de suas ações e decisões.

Andy Haldane, economista-chefe do BoE, mostrou que grande parte do que os bancos centrais dizem só é compreendido por uma pequena parcela da população. Somente 2% da população consegue ler e entender as minutas do Comitê de Mercado Aberto do Fed, o Fomc, que estabelece as taxas de juros, enquanto 70% consegue entender um discurso de campanha de Trump. Essa lacuna precisa ser fechada e os bancos centrais deveriam tornar seu trabalho mais acessível ao público.

Talvez uma viagem coletiva para o Quirguistão seja boa para observar as melhores práticas em ação. (Tradução de Mário Zamarian)

Howard Davies é presidente do Royal Bank of Scotland. Copyright: Project Syndicate, 2020.