Valor Econômico, n. 4950, 29/02/2020. Legislação & Tributos, p. E2

Carf discute novo regimento
Cristiane Silva Costa


A presidência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) disponibilizou consulta pública sobre alterações no Regimento Interno do Carf, que podem ter grande impacto no julgamento de recursos administrativos que tratam da exigência de tributos federais. A iniciativa é louvável, considerando a relevância de processos julgados pelo Conselho.

Merece igualmente elogio a previsão na minuta de Regimento Interno do Carf (Ricarf) do sobrestamento de processos que discutam temas que foram objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com repercussão geral, mas sem trânsito em julgado, o que certamente reduzirá a disparidade de entendimentos de Turmas do Carf. Nesse sentido, à luz do regramento anterior, foram proferidas diversas decisões, pelos julgadores do Conselho, contrárias à orientação do STF a respeito da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins. A norma processual, desta forma, assegurará que não sejam proferidos julgamentos contrários à orientação do STF.

No mesmo sentido, é elogiável a previsão de sobrestamento dos processos administrativos no caso de julgamento de matéria infraconstitucional pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o regime de recursos repetitivos antes do trânsito em julgado.

A despeito da admirável postura de ouvir a sociedade e dos diversos pontos positivos na minuta do Ricarf, preocupam algumas previsões do texto disponibilizado pelo órgão.

Com efeito, causa desconforto a falta de previsão de sobrestamento no caso de julgamento definitivo pelo STJ, quando também haja matéria constitucional, situação que alcança inúmeros debates tributários. Sem a previsão de possível sobrestamento, multiplicam-se decisões do Carf que não observam uma das mais altas Cortes Judiciais, cujas decisões deveriam ter efeitos para todos. A insegurança jurídica deveria ser avaliada, lapidando-se a previsão do Ricarf a esse respeito.

A autorização para decisões monocráticas - a serem tomadas exclusivamente por representantes da Fazenda Nacional (RFB) - também merece apreensão, considerando a habitual divergência entre julgadores do Carf a respeito da intempestividade de recursos e da concomitância com ação judicial.

Além da recorrente divergência de entendimento entre conselheiros a respeito destes temas, é importante lembrar que a lei define que os julgamentos no Carf serão paritários. Assim, a previsão de decisões monocráticas destoa da diretriz legal de que todos os julgamentos sejam realizados por Colegiados, com a participação efetiva de conselheiros representantes dos contribuintes.

Ademais, preocupam as previsões regimentais que desprestigiam a atuação de Colegiados do Carf no caso de “impossibilidade de cumprimento de resoluções em casos não previstos na legislação ou neste regimento”. Como mencionamos, a lei exige julgamento paritário, por Colegiados, havendo recursos cabíveis para que se reformem os acórdãos e resoluções.

O receio se justifica se considerado, por exemplo, que a CSRF sobrestou inúmeros processos nos quais se discutia exigência relacionada às subvenções para investimento, para que se aguardasse “o cumprimento dos requisitos tratados pela 2ª a 4ª do Convênio ICMS nº 190/2017”. Estas resoluções - se tomadas após alteração do Ricarf, porventura aprovadas na atual redação - poderiam ser monocraticamente reformadas, o que contraria os valores legais que orientam a atuação do Carf.

Da mesma forma, causa preocupação a previsão de recurso especial adesivo, a ser apresentado “relativamente à parte do acórdão que, embora lhe tenha sido favorável, o interesse recursal se configure com o seguimento do recurso especial” da parte contrária. De forma totalmente distinta da previsão em processo judicial, estabelece ônus de recorrer à parte que não foi sucumbente no julgamento de recurso voluntário.  Esta previsão - se confirmada após a consulta pública e análise pelo Carf - terá grande impacto, considerando a dificuldade de cumprimento dos requisitos para conhecimento do recurso especial e, nesta medida, possível ilegalidade, tanto porque o recurso especial não seria por efetiva “divergência”, quanto porque poderia ser inviabilizada a análise de provas e alegações trazidas ao longo do processo.

Ainda considerando a ampla defesa e o contraditório, seria recomendável oportunizar a apresentação de contrarrazões em embargos de declaração no Carf. Na esfera judicial, há possibilidade de contrarrazões, caso “seu eventual acolhimento implique a modificação da decisão embargada”. No mesmo sentido, seria razoável assegurar às empresas o pleno conhecimento de eventuais razões que pudessem alterar julgamentos do Carf, com a possibilidade de contrarrazões.

Em processos administrativos fiscais federais, os embargos podem ser opostos por delegados da Receita Federal, distinção procedimental que reforça a necessidade intimação do contribuinte quando opostos embargos.

A falta de previsão de intimação ficta dos delegados - para início da contagem do prazo de embargos - é outra indefinição que poderia ser avaliada em alteração das regras processuais.

Diante deste quadro, destaca-se que o prazo final para sugestões se esgota no próximo dia 6 de março. Portanto, ainda é possível formalizar sugestões à presidente do Carf, que certamente serão consideradas, diante da crescente postura dialética do Carf nos últimos anos, sempre técnica e respeitável, manifestada pela atual gestora do órgão.

Cristiane Silva Costa é advogada, sócia do escritório Thomazinho, Monteiro, Bellangero & Jorge, mestre em direito Tributário pela PUC-SP, professora conferencista do Ibet, foi vice-presidente do Carf, tendo se dedicado ao julgamento de processos administrativos de 2010 ao início de 2020.

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