Valor Econômico, n.
4951, 03/03/2020. Opinião, p. A12
A transição para os
carros elétricos e caminhões a gás
Daniel Rossi
A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2019 (CoP-25),
em Madri, alertou para o fato de que as emissões de gases de efeito estufa
continuam aumentando. Em 2019, houve crescimento de 0,6% em relação a
2018; no anterior, a taxa foi 2,1% maior do que em 2017. Até o final deste ano,
os níveis de CO2 na atmosfera deverão atingir 37 bilhões de toneladas: um
recorde histórico.
O setor de transporte é
considerado um ponto chave nas discussões sobre o futuro sustentável do
planeta. Nos grandes centros urbanos, a substituição das frotas de veículos
leves pelos carros elétricos é uma tendência inexorável. Países como França,
Reino Unido, Noruega, Índia e China anunciaram prazo para encerrar a venda de
carros novos a diesel e gasolina, e já existem projetos de lei a respeito
circulando no S como o PLS 304/2017 e o PLS 454/2017.
O carro elétrico oferece
diversas vantagens para os centros urbanos, como melhor qualidade do ar e
redução da poluição sonora. Mas, por si só, não garante benefícios ambientais.
Se a energia para abastecê-los for gerada a partir de
fontes fósseis, o impacto sobre as reduções de emissão pode ser nulo. Caso o
Brasil substituísse toda sua frota atual de veículos elétricos, seria
necessária uma expansão de 21% de nosso sistema elétrico. Se apenas 10% da
frota nacional fosse substituída, haveria necessidade de expansão do sistema em
cerca de 1,4 GW médio - energia que precisa vir de fontes renováveis, em
projetos de baixo impacto ambiental, para que a transição energética faça
sentido.
Mas, no caso das frotas
pesadas, a eletrificação esbarra na baixa autonomia dos veículos e alto tempo
de recarga, uma vez que não contamos com uma ampla rede de postos de recarga
ultrarrápida no Brasil. Em países que dependem majoritariamente do modal
rodoviário para suas operações logísticas, como o Brasil, há necessidade
de soluções que levem em conta as características e disparidades
territoriais.
Com a estruturação do
Novo Mercado de Gás, a expectativa é de que os combustíveis gasosos se
configurem em alternativa economicamente viável. Estima-se que as emissões de
CO2 em veículos a GNV sejam cerca de 20% menores do que em veículos a
diesel. Além disso, um estudo do Centro de Pesquisa de Inovação de Gás
(RCGI/USP) aponta que, no Estado de São Paulo, a substituição do diesel por gás
natural no transporte de cargas resultaria em benefícios ambientais
significativos. A emissão de materiais particulados seria reduzida em até 88% e
a dos óxidos de nitrogênio (NOx), diminuindo a
poluição atmosférica.
O Brasil tem tido um
papel de protagonista nesse processo de transição para fontes energéticas mais
limpas e renováveis. Foi pioneiro, há 40 anos, na tecnologia do carro movido a
etanol, um orgulho nacional. Desenvolvida no âmbito do Programa Nacional do
Álcool (Proálcool), de 1975, essa tecnologia foi uma resposta à crise do
petróleo de 1973, que tornou a gasolina cara e escassa. De lá para cá, o país
desenvolveu várias iniciativas que priorizam a produção de biocombustíveis.
Nenhuma outra nação tem uma matriz energética com tamanha flexibilidade.
No interior do Brasil,
há muitas alternativas promissoras sendo estruturadas. O biometano,
equivalente “verde” do gás natural, pode substitui-lo perfeitamente nos mais
diversos usos e aplicações, com redução quase total - de até 95% - das emissões
de CO2 se comparada ao óleo diesel. Obtido a partir do aproveitamento de
resíduos agroindustriais, e considerando-se a pujança do setor
sucroalcooleiro e do agronegócio nacional, esse biocombustível tem alto
potencial de produção: cerca de 70 milhões de m³ por dia, segundo a Associação
Brasileira de Biogás (ABiogás). A título de
comparação, o consumo de gás natural no Brasil em 2018, considerando-se todas
as suas aplicações, foi de cerca de 63 milhões de m³ por dia.
O biometano
oriundo de vinhaça vem sendo chamado de “pré-sal do
agronegócio”. Esse resíduo é o principal efluente em usinas de produção de
etanol a partir da cana-de-açúcar. Para cada litro de combustível, são gerados,
em média, 12 litros de vinhaça. Em 2019, o Brasil produziu cerca de 30
bilhões de litros de etanol oriundo de cultura canavieira, disponibilizando
assim mais de 360 bilhões de litros de vinhaça - que pode ser usada para fertirrigação e para a produção de biometano.
Há grande probabilidade de que o biometano seja mais
competitivo que o gás natural e o óleo diesel. Dessa forma, sua presença no
mercado será complementar aos combustíveis fósseis.
A penetração dos
gasodutos ainda é restrita no interior do país, dificultando a chegada do gás
natural ao ponto de consumo. O biometano, por sua
vez, pode ser feito de maneira distribuída, aproveitando insumos disponíveis em
diferentes propriedades rurais, em sistemas de parcerias. Ambos os
combustíveis - gás natural e biometano - podem ser
estruturados em redes complementares, garantindo insumos para uma frota a gás
ao longo das principais rotas de transporte de cargas.
O Brasil vem avançando
continuamente em sua política de transição energética. A Portaria 419/19, que
regulamenta o mercado dos Créditos de Descarbonização
(CBIOs), é um mecanismo de estímulo exemplar,
desenvolvido dentro da Política Nacional de Biocombustíveis, o RenovaBio, - uma das principais frentes de atuação do
Brasil para atender às metas do Acordo de Paris. O país se comprometeu a
reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% até 2030.
O biometano
pode fazer o Brasil repetir no mercado de veículos pesados o sucesso que obteve
com o etanol no caso de automóveis leves. Além disso, alinhará o mercado de
combustíveis brasileiro às principais tendências econômicas mundiais, como a
descentralização e a descarbonização, que unidas
à digitalização, vêm transformando a forma de produzir e consumir produtos e
viabilizando práticas mais sustentáveis.
Daniel Rossi é CEO da Zeg, uma empresa do Grupo Capitale
Energia.