Valor Econômico, n.
4951, 03/03/2020. Legislação & Tributos, p. E2
Um ‘jabuti’ no Marco
Legal do Saneamento
Rodrigo Bertoccelli
Fabricio Soler
O Congresso Nacional virou um criadouro de jabutis. Infelizmente os jabutis do
Legislativo não têm relação alguma com o simpático animal, parente próximo da
tartaruga. São emendas parlamentares que modificam projetos de lei em
discussão provenientes de lugar incerto e não sabido. Da mesma forma que o
verdadeiro jabuti não sobe em árvore, uma emenda não surge do nada.
Um desses mais recentes
“jabutis” surgiu no processo de votação do Novo Marco Legal do Saneamento,
ocorrido no dia 11 de dezembro de 2019, na Câmara dos Deputados. O jabuti
surgiu quando da inclusão, sem discussão alguma na Comissão Especial e em
Plenário, da Emenda nº 16 ao PL nº 4.162/2019.
Essa emenda apartou os
setores de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, bem como o de drenagem
e manejo das águas pluviais urbanas, os quais ao lado dos setores de água e
esgoto integram o grande gênero “saneamento básico”, de toda a lógica de
isonomia competitiva e atração de investimentos que reveste a iniciativa que
busca modernizar os diferentes serviços e viabilizar o acesso ao
saneamento no país.
A emenda, que foi
aprovada na Câmara dos Deputados, surpreendeu a todos ao acrescentar um novo
artigo 20 ao projeto de lei para impedir a livre concorrência na prestação de
serviços de saneamento. O dispositivo restringe apenas ao segmento de água e
esgoto a obrigatoriedade da delegação de prestação de serviços por meio de
concessão, além de vedar a delegação por meio de contrato de programa quando o
serviço não for prestado pelo próprio ente federado.
Em outras palavras, se o
texto for mantido no Senado, não será possível que serviços públicos de limpeza
urbana e manejo de resíduos sólidos, sejam delegados por meio de concessão,
mas apenas por meio de contratos de programa, perpetuando a prestação desses
serviços de forma direta ou por ineficientes empresas estatais.
Resignar-se com o
crescente passivo ambiental gerado pelos mais de três mil lixões a céu aberto
no país e as recorrentes tragédias ocasionadas pelos alagamentos
decorrentes do descarte irregular de lixo e de sistemas de drenagem arcaicos,
como vivenciaram São Paulo e muitas outras cidades brasileiras por ocasião das
chuvas do último dia 10 de fevereiro, não são com certeza o espírito da nova
regulação.
A concessão de serviços
públicos é imperativa para o desenvolvimento do país, pois garante mais
eficiência e economicidade na prestação dos serviços. O regime de
concessão permite o aporte de investimentos necessários no setor de resíduos
sólidos, há muito tempo defasado.
Isso não se mostra
possível com a continuidade da prestação dos serviços diretamente pela
Administração Pública, por empresas estatais ou por meio de contratos de
prestação de serviços licitados pela Lei Federal nº 8.666/93 (Lei de
Licitações), cujo modelo impossibilita um planejamento de longo prazo.
Um exemplo das melhorias
que as concessões podem oferecer ao setor é apontado pelo Índice de
Sustentabilidade da Limpeza Urbana (ISLU), que permite analisar este tipo de
serviço, incluindo o manejo de resíduos sólidos, nos municípios brasileiros. Os
locais que apresentam os melhores índices estão situados nas regiões Sul e
Sudeste (ISLU/Selur), sendo que, essas regiões também possuem o maior
número de concessões (Radar PPP).
Além da incoerência em
termos de eficiência e economicidade, não condicionar a utilização de
concessões para o setor de resíduos sólidos e para o manejo de águas pluviais,
como está sendo feito para o esgoto e o abastecimento de água, significa
retrocesso social e jurídico - expressamente contrário ao preceito do
artigo 175 da Constituição Federal (que permite a delegação de serviços
públicos por meio de concessão), e da própria Lei Federal nº 8.987/1995 (Lei de
Concessões) - assim como o agravamento do risco à saúde pública, pois 40% dos
resíduos brasileiros ainda são destinados inadequadamente.
Transformar a realidade
do saneamento básico requer esforço conjunto e coordenado entre atores públicos
e privados, com a clareza de que a prestação de um serviço eficiente, adequado
e universal deve ocupar o centro dos debates no setor. É preciso, portanto,
maximizar o investimento e melhorar a qualidade de vida das pessoas. Os
cidadãos e a prestação de um serviço público eficiente devem estar no
centro das discussões.
Nesse compasso,
portanto, espera-se que o Senado afaste esse “jabuti” por ser matéria estranha
ao PL nº 4.162/2019. Não faz sentido o setor de resíduos sólidos, de limpeza
urbana e de manejo de águas pluviais terem um tratamento normativo
diferente do setor de água e esgoto quando todos integram o saneamento básico,
ora reconhecido pela ONU como um direito humano.
Rodrigo Bertoccelli e
Fabricio Soler são, respectivamente, sócios das áreas de Infraestrutura,
Saneamento, e de Ambiente, Sustentabilidade e Resíduos do Felsberg
Advogados