O Globo, n. 32652, 30/12/2022. Opinião, p. 2

Jamais haverá ninguém que se compare a Pelé



Não houve, não há, nem haverá jamais ninguém que se lhe compare. Nas estatísticas, óbvio, mas também — e sobretudo — no exemplo. Foi Pelé — com a marca insuperável de 1.282 gols em 1.364 jogos (479 antes dos 21 anos), três Copas do Mundo antes dos 30 (a primeira aos 17), bicampeonato mundial e dez títulos pelo Santos, além da carreira que lhe rendeu o título de “atleta do século” —, foi Pelé quem mostrou ao brasileiro ser possível livrar-se do rodriguiano “complexo de vira-lata”.

Foi rei no esporte mais popular do planeta, projetando o Brasil como potência. O menino negro, engraxate que jogava com bola de meia em Três Corações, não suportou ver o pai chorar depois da derrota do Brasil na final da Copa de 1950. Prometeu aos 9 anos que traria o caneco— e cumpriu. Quem o viu jogar sabe quão ocioso é compará-lo a outros que tentaram reivindicar (ou usurpar) sua coroa. Não apenas porque suas estatísticas permanecem imbatíveis ou por ter transformado o futebol em arte, com lances desconcertantes, imitados e repetidos à exaustão. Não apenas pela capacidade de enxergar o jogo em três (até quatro...) dimensões, de saber quando chutar a gol e quando driblar, quando fazer uma finta e quando dar um chapéu na defesa e no goleiro — ou apenas quando deixar a bola passar para que um Jairzinho ou Carlos Alberto desferisse a bomba fatídica nas redes. Não apenas por ter dado origem à expressão “gol de placa”, por ter gerado a mística em torno da camisa 10 ou por ter virado substantivo, sinônimo de “o melhor” em qualquer área. Mas sobretudo porque não haveria Maradona, Cruijff, Messi, Neymar ou Mbappé não tivesse havido antes um Pelé.

Seu jogo projetou-o ao mundo quando as imagens da televisão tornavam o futebol global. Conquistou o planeta num momento em que o esporte começava a se transformar no negócio que hoje atrai bilhões e movimenta trilhões. Foi a primeira estrela futebolística reconhecida no mundo todo — e abriu caminho aos que vieram depois. Mesmo idoso, era seguido por fãs ávidos por uma foto ou autógrafo. Desde 1958, Pelé nunca saiu de moda.

Ao referir-se a si mesmo na terceira pessoa, hábito visto por muitos como cabotino, também demonstrava uma sabedoria incomum entre esportistas que alcançam riqueza e sucesso antes da maturidade. Uma coisa era a majestade do Rei Pelé, a figura pública. Outra o cidadão Edson Arantes do Nascimento, um ser humano comum, capaz de se envolver em trapalhadas nos negócios e nos amores, de se negar a reconhecer a filha fora do casamento e de nem sempre corresponder à expectativa de perfeição projetada sobre os heróis. Errou, mas quase sempre teve a dignidade de reconhecer suas falhas.

Ainda que tenha aceitado ocupar o Ministério dos Esportes no governo Fernando Henrique, teve também a sabedoria de se manter distante da política partidária. Num país com uma história horrenda de escravidão, combateu o racismo não com declarações militantes, mas pelo exemplo. Era um defensor contumaz de melhorias na educação. Dedicou às crianças o gol de 1969 considerado seu milésimo. Valorizava a perseverança, dizia que era preciso empenho no treinamento para não desperdiçar talento. Para a glória dos brasileiros e dos amantes do futebol, ele não desperdiçou nem um milímetro do seu. Morreu o Edson. Pelé, todos sabemos, é eterno.